O desafio é simples, pelo menos para quem sabe cavalgar e ao mesmo
tempo tem habilidade com as mãos para flechar duas argolas com 10
centímetros de diâmetro cada. Para participar da cavalhada, como esse
esporte é conhecido pelo sertanejo cearense, basta apenas ter um bom
cavalo e disposição para continuar na disputa o dia todo, se for
preciso. A competição se encerra quando o último cavaleiro concorrente é
eliminado por não conseguir acertar as argolas com a flecha de madeira,
única arma utilizada por todos, ou deixa-las cair no chão.
Cedinho, quando o sol está nascendo, os organizadores começam a
preparar a arena; montam duas traves e prendem as argolas no arame
esticado de um lado ao outro. Os dois anéis ficam dependurados no
centro. O cavaleiro parte em disparada de uma extensão de 100 metros,
flecha a argolas e ainda precisa evitar cruzar a faixa de limite da
pista com o seu animal, senão é desclassificado. Em seguida retorna ao
argoleiro e entrega os alvos. Para evitar trapaças a mesma flecha é
passada para o cavaleiro concorrente. Dai em diante, é torcer para os
opositores fracassarem.
Décadas
Embora pouco divulgada no Estado do Ceará, a cavalhada é praticada no
sertão do Ceará há décadas. No distrito de São João dos Queiroz, na zona
rural de Quixadá, é realizada desde o surgimento do povoado. Há 30 anos
sempre no fim do mês de julho, foi incluída como modalidade olímpica
dos jogos realizados por esta comunidade, distante 30Km do Centro de
Quixadá. Percebe-se o interesse pelo número de cavaleiros inscritos,
chegando até de cidades vizinhas, formando mais de 15 duplas, e pelo
público na torcida.
Quem participa da brincadeira desde a adolescência, como o cavaleiro
Miguel Patrício Neto, nascido e criado em São João dos Queiroz, explica
ser uma prática mais comum do que muita gente imagina. Noutras
localidades da região, como Juatama, também em Quixadá, a cavalhada já é
tradição. Com o passar do tempo, foram ocorrendo mudanças e se tornando
mais simples, sem muitas exigências, mas, uma coisa é certa, para
disputar, o cavaleiro precisa ter o seu par. "É um esporte em equipe",
acrescenta Miguel. Esse hábito, Miguel Patrício, 48; e Abraão Barbosa,
23, da Fazenda Tesouras, em Ibaretama, adquiriram dos pais e assim vai
se mantendo, de geração em geração. Entretanto, mesmo não sendo um
esporte muito arriscado, os adolescentes não podem participar. O
acidente mais comum, a queda da montaria, pode até matar. Por isso, quem
organiza o embate, prefere não arriscar muito.
Mulheres também participam, como a cavaleira Nádia Pompeu Carneiro.
Apaixonada por cavalos e por atividades saudáveis, se inscreveu. Ela já
havia visto os cavaleiros se enfrentarem. Segura na montaria e confiante
no seu animal, restava apenas concorrer, e nem foi preciso treinar. A
cada rodada, se sentia mais confiante e foi até aplaudida pelo público.
Agora, ela pretende participar da próxima cavalhada na região. Será
realizada no fim do ano, em Juatama. Ouviu falar ser a mais concorrida,
mas aprendeu que a paciência é a principal estratégia para vencer a
competição e, essa virtude, o sexo feminino têm de sobra. Ela foi a
primeira mulher a participar da cavalhada de São João dos Queiroz.
Entretanto, nem a cavaleira e nem os cavaleiros conhecem as origens da
cavalhada. Sabem apenas do surgimento do costume na região, trazido
pelos vaqueiros. Para eles, o ritual é apenas um esporte, mas,
perguntados se notavam alguma semelhança com as lutas mediáveis, na
Idade Média, quando cavaleiros, de armaduras, se enfrentavam utilizando
lanças, logo associaram à pratica milenar.
Buscando as origens
À frente da secretaria de Cultura, Esporte de Juventude de Quixadá há
pouco mais de seis meses, o professor Audênio Moraes pretende realizar
uma minuciosa pesquisa sobre as cavalhadas e auxiliar os organizadores e
praticantes na preservação dessa cultura. O objetivo é evitar as
mutações realizadas na modernidade pelo interesse pessoal, vez que, no
Município, são geralmente eventos particulares, até então sem apoio
institucional.
A cavalhada de Juatama é um exemplo. Começou a ser realizada nesta
comunidade rural de Quixadá na década de 1990. A iniciativa partiu do
professor, ex-senador e fazendeiro Flávio Torres, como uma forma de
manter os laços com a colonização destas terras, seus costumes.
Inclusive, era sempre realizada no Dia da Independência, 7 de setembro.
Passadas quase três décadas, a data vai mudar, em razão das obras na
arena. Mudou de lugar e está recebendo uma nova estrutura. Outra família
passou a organizar o evento, explicou o secretário.
O interesse de Audênio Moraes faz sentido. Os folcloristas consideram
mudanças nos folguedos, de uma região para outra do País com
naturalidade, como ocorre na dança de São Gonçalo, no Bumba Meu Boi, nos
reisados, nos pastoris. Com a cavalhada não é diferente.
Messias
Ainda no Nordeste, Messias, um município de Alagoas, é prova dessa
transformação. Nessa cidade, distante 30Km da capital, Maceió, os
cavaleiros se dividem em dois grupos, o azul e o vermelho, simbolizando
os mouros e os cristãos nas batalhas medievais. Vestem blusas de cetim
em uma das cores e calças brancas.
Ao invés de flechas, usam lanças. Os cavaleiros participam, inclusive,
de encontros estaduais. De acordo com a Assessoria de Comunicação da
Prefeitura de Messias, neste ano, a competição será realizada.
Fique por dentro
Conheça a origem da celebração
Segundo historiadores, a Cavalhada é uma celebração portuguesa
tradicional, que teve origem nos torneios medievais, onde os
aristocratas exibiam a sua destreza e valentia em espetáculos públicos.
Esses torneios serviam como exercício militar nos intervalos das
guerras, onde nobres e guerreiros se enfrentavam cultuando a galanteria
entre eles. Também estão associadas às batalhas entre cristãos, na
figura de Carlos Magno e seus cavaleiros, transformados em cruzados e
enviados em luta contra os mouros na Península Ibérica.
Depois de terem conquistado Jerusalém, no ano 1099, os cavaleiros
cristãos, na época da primeira cruzada, dividiram a região da Terra
Santa em diversos reinos. Eles conseguiram firmar-se lá por dois
séculos, explorando a fraqueza e os desacertos entre os maometanos. Essa
situação durou até um chefe curdo, Saladino, conseguir liderar o povo
do Crescente para expulsá-los. A partir dele, os dias de posse da
cristandade de um pedaço da terra sagrada se encerraram.
Diário do Nordeste



