Quatro anos depois do fim da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na
Câmara que investigou por dois anos denúncias de turismo sexual e
exploração sexual de crianças e adolescentes, o Congresso Nacional não
votou nenhum dos projetos indicados no relatório final da CPI. Das treze
proposições nascidas na comissão, apenas três estão prontas para serem
votadas em plenário. O restante ainda está em fase de debate e análise
das comissões temáticas.
Entre as propostas que aguardam apreciação dos deputados, está a que
tipifica como crime “o estupro de vulnerável independentemente do
consentimento da vítima ou desta já ter mantido relações sexuais
anteriores”. Também aguarda votação o projeto que trata do combate à
exploração sexual de crianças e adolescentes em contextos de grandes
obras, como construção de hidrelétricas e outros empreendimentos que
atraem muitos homens para áreas com populações vulneráveis.
Na lista pendente de votação, constam ainda projetos que preveem o
fechamento de boates e casas de espetáculo que não tenham documentação
adequada, a criação de um banco de DNA específico para crimes contra a
dignidade sexual de crianças e adolescentes, além da definição de
promoção ou facilitação de tráfico de crianças como crime passível de
reclusão.
Denúncias
O relatório mais recente da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos
mostra que as violações contra crianças e adolescentes lideram a lista
de denúncias registradas no Disque 100 em 2017. E um estudo preliminar
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que 70% das
vítimas de estupro são crianças e adolescentes.
O Congresso Nacional tem mais de 4 mil proposições que tratam de
direitos das crianças e dos adolescentes e são monitoradas pelo programa
da agenda legislativa da Fundação Abrinq. Desse total, mais de 90 estão
diretamente relacionadas à questão da violência sexual infantil.
Muitas das propostas nasceram de polêmicas que ganharam repercussão
nacional, como denúncias de abuso de crianças em clubes esportivos. A
divulgação recente pela imprensa de casos envolvendo atletas chamou a
atenção para o Projeto de Lei 8038, de 2014, que estabelece algumas
condições para escolas de formação esportiva destinadas a crianças e
adolescentes.
O projeto propõe que as escolinhas sejam cadastradas nos conselhos
tutelares dos municípios, que deverão ter a responsabilidade
compartilhada com as federações esportivas de monitorar o trabalho das
escolas. O projeto prevê ainda que o estabelecimento deverá ter suas
atividades suspensas em caso de abuso ou maus-tratos contra crianças
ocorridos no local de treinamento.
“É importante também que se estabeleçam os efetivos mecanismos de
fiscalização da atuação dessas escolinhas de treinamento esportivo de
criança e adolescente para que a violação de fato não aconteça, ou se
alguma irregularidade estiver sendo colocada em prática, que isso seja
percebido e que as denúncias possam ser investigadas a termo. E que a
gente não precise de tempos em tempos passar por esses processos
públicos de denúncias coletivas, porque a legislação é permissiva, do
ponto de vista da atuação com criança e adolescente”, destaca Maitê
Gauto, líder de políticas públicas da Fundação Abrinq.
Fiscalização
Para a fundação, muitas proposições do Legislativo ainda precisam ser
atualizadas para não repetir o que já existe na legislação brasileira e
não é cumprido. Maitê cita como exemplo o projeto de lei 8039/2014, que
está na lista das propostas da CPI de Exploração Sexual. O projeto prevê
a suspensão do funcionamento dos postos de combustível onde for
identificada a prática de exploração sexual, medida já prevista no
Estatuto da Criança e do Adolescente.
“As instituições que fiscalizam precisam dispor dos recursos necessários
pra que essa fiscalização seja efetiva. Então, muitas vezes a solução
está muito mais em fortalecer a capacidade institucional dos órgãos de
fiscalização do que fazer uma proposição legislativa que vai apenas
reforçar aquilo que a lei já prevê, que é a suspensão da atividade de
qualquer estabelecimento onde seja identificada a prática de exploração
sexual de criança e adolescente”, esclarece Maitê Gauto.
A pesquisadora explica ainda que muitas proposições são
bem-intencionadas, mas ao longo do processo legislativo sofrem
alterações que podem comprometer o objetivo final de garantia de
direitos e promover retrocesso. Foi o que ocorreu com o projeto de lei
que nasceu da repercussão do estupro coletivo de uma adolescente no Rio
de Janeiro. O fato motivou a rápida elaboração e tramitação de um
projeto da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) para tipificar o
estupro coletivo como crime.
Contudo, quando chegou na Câmara, a proposta, apesar de considerada
positiva pelos ativistas, sofreu uma modificação que preocupou a rede de
proteção dos direitos da criança e do adolescente. O substitutivo
previa uma redução da pena para o estupro, inclusive de vulnerável
(crianças até 14 anos de idade), levando em consideração a intensidade
do dolo e que há diferentes tipos de danos.
“É um raciocínio bastante prejudicial do ponto de vista da criança,
porque você não tem como de fato quantificar qual é o dano que uma
violência sexual em uma criança de seis anos de idade, por exemplo, vai
ter tanto naquele momento quanto ao longo da vida. Então, ao discutir a
velocidade da tramitação a gente precisa olhar caso a caso, porque
existem casos em que é melhor que a proposição não vá adiante, porque
não vai promover nenhum progresso do ponto de vista do aprimoramento do
marco legal”, acrescentou.
Investimento
Uma das questões mais debatidas na Câmara durante a CPI da Exploração
Sexual, realizada no contexto da preparação do Brasil para sediar a Copa
do Mundo, foi a necessidade de aumento do investimento em ações de
combate à exploração sexual infantil. Isso constou do relatório final.
Levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
mostra que o orçamento do canal de denúncias Disque 100 recebeu um corte
de 49,5% em 2017, em relação ao ano anterior. A pesquisa do instituto
também revela que o montante do orçamento público federal destinado a
programas de defesa dos direitos da criança e do adolescente vem caindo
nos últimos anos. Ainda segundo o Inesc, em 2017, a política de proteção
da infância pagou R$ 8,3 milhões, recursos que foram destinados em sua
totalidade para a construção, reforma, ampliação e equipagem de unidades
de atendimento.
“É importante olhar a dotação inicial do que foi aprovado como orçamento
e o que de fato foi empenhado. Porque, como o nosso orçamento não é
impositivo, é apenas de planejamento, o governo diz que vai gastar
tanto, mas não significa que no fim do ano ele vai ter investido todo o
recurso. E é nessa conta onde a gente percebe a redução do
investimento”, ressalta Maitê Gauto.
Como exemplo, a especialista cita o programa de enfrentamento das
violências contra criança e adolescente, coordenado pelo Ministério de
Direitos Humanos. No início deste ano, a pasta tinha previsto um pouco
mais de R$ 3,5 milhões de dotação inicial e executou R$ 195 mil, segundo
dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do governo
federal.
A pesquisadora alerta ainda que uma análise preliminar do orçamento
permite constatar que o maior volume de investimentos tem sido feito em
prol de ações referentes à violência cometida por adolescentes em
conflito com a lei e não para prevenir futuras agressões. Maitê informou
que a Fundação Abrinq está elaborando um levantamento detalhado da
execução orçamentária dos últimos três anos para identificar o montante
destinado e pago a ações de defesa dos direitos da infância e da
adolescência. O relatório deve ser lançado em agosto deste ano.
O Ministério dos Direitos Humanos apresentou números diferentes dos
citados pelo Inesc. Segundo a pasta, o orçamento destinado ao Disque 100
subiu de R$ 22,6 milhões, em 2016, para R$ 26,4 milhões no ano passado.
O ministério informou ainda que o Programa de Proteção a Crianças e
Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), que é executado em parceria
com governos estaduais e organizações não governamentais, cresceu de R$
7,7 milhões em 2016, para R$ 9,7 milhões, em 2017, e saltou para R$
14,5 milhões, em 2018. Atualmente, o programa está presente em 13
estados: Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Minas
Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande
do Sul e São Paulo. Nos estados que não possuem programa local, o
atendimento é prestado pelo Núcleo Técnico Federal. Em 2017, o PPCAAM
protegeu 1.170 pessoas, sendo 473 crianças e adolescentes e 697
familiares.
Agência Brasil