As marcas expressivas nas mãos, adquiridas ao
longo dos anos, denunciam o extenso período de tempo que dona Nicinha
dedica à arte de fabricar peças utilizando a palha de carnaúba na
comunidade em que vive desde os primeiros anos de vida. É no Sítio
Volta, interior de Jaguaruana, no Vale do Jaguaribe, que ela e outras 15
artesãs se reúnem diariamente para transformar a palha em arte.
De tão exuberantes, as peças do grupo ultrapassaram fronteiras e
chegaram até a Cidade Maravilhosa. Neste ano, serão elas as responsáveis
por ornamentar o carro abre-alas da Escola de Samba União da Ilha do
Governador, cujo samba-enredo mostra a fictícia peleja poética entre
Raquel de Queiroz e José de Alencar.
A carnaúba, palmeira endêmica do Semiárido da região Nordeste do
País, vai dar forma à poesia em forma de samba e representar uma parte
importante da cultura cearense na Marquês de Sapucaí.
Cerca de 15 mil peças, produzidas ao longo de 70 dias, foram
exportadas para o Rio de Janeiro. A maior parte do material será
utilizada na decoração do carro abre-alas e de diversos outros adereços e
fantasias que vão compor o desfile que a União da Ilha do Governador
levará à Avenida. A agremiação também vai usar peças em renda de filé,
confeccionadas por artesãs do município de Jaguaribe.
Para atender à demanda extra, um grupo de 15 mulheres do projeto
Memorial da Carnaúba teve reforço. Cerca de 140 pessoas, entre artesãs,
extrativistas e jovens-aprendizes se uniram em um trabalho cooperado
para confeccionarem franjas, descansos de prato, esteiras, chapéus,
leques, mandalas, flores e outros produtos feitos com a palha. Aliás,
diante dessa múltipla variedade de aplicações, a palmeira passou a ser
conhecida como "árvore da vida".
A pluralidade de produtos derivados da carnaúba simboliza com
fidelidade o roteiro de vida do sertanejo, marcado por luta, superação e
arte, conforme versam os poemas de Rachel e Alencar. Conforme o
carnavalesco da União da Ilha, Severo Luzardo, é a primeira vez que um
trabalho como esse passa pelo sambódromo. "Tivemos toda a preocupação
com o tingimento da palha da carnaúba, mesclando com trabalhos
delicados. É uma conjunção da estética do Carnaval aliada à prática do
artesanato para realização de um projeto único, que funcionou muito bem.
São portas que se abrem".
Todo o trabalho de extração e de artesanato da palha da carnaubeira é
realizado no Memorial da Carnaúba, criado há 11 anos no sertão
cearenses. Dirigido por Daisy Rocha e Afro-Negrão, o projeto acolhe
centenas de produtores rurais e artesãos de baixa renda que tiram o
sustento da planta. O desfile, além de reconhecer o trabalho das
artesãs, será uma grande vitrine para a relevância da carnaúba e também
para o trabalho desempenhado pelo grupo.
Para além de levar formas e cores à Sapucaí, as peças conferem mais
dignidade às mulheres que há décadas dedicam a vida à arte. "Elas fazem
esse trabalho há muitos anos. Algumas, desde quando se entendem por
gente, como é o caso de dona Nicinha, que há mais de 60 anos pratica o
ofício. Então, ter suas peças expostas em um desfile que pessoas de 124
países estarão assistindo, é um prêmio. Ele dignifica e reconhece a
importância que essas artesãs possuem não só para o Estado, mas para
todo o Brasil", diz Afro.
Valor
O Memorial não especificou o valor pago pela Escola de Samba a cada
um dos envolvidos neste projeto, entretanto, o relato das artesãs expõe
que o trabalho desempenhado vai além do financeiro, transcende o campo
material. "Comprei uma bicicleta para levar minha neta à escola", conta a
artesã que, há duas semanas, fazia o percurso de 3km a pé. "Outras
adquiriram eletrodomésticos, quitaram contas ou fizeram algum ajuste em
suas cascas", acrescenta o fundador do Memorial.
Há 20 anos, Afro-Negrão pesquisa e estuda a carnaúba do Ceará,
fazendo um papel de ligação entre o campo e a indústria. "Temos
procurado dar mais qualidade, identificando as dificuldades de campo
para manutenção do processo. A partir disso, encontramos cinco pontos a
serem trabalhados com as comunidades, que são o aspecto cultural,
artístico, social, ambiental e econômico, todos envolvidos no processo
da carnaúba", explica Afro.
Preservação
Nos campos ambiental e econômico, ele destaca que a exposição das
peças do Carnaval carioca reforça o discurso "de preservação da
palmeira". Lembra que o Memorial abrange uma área de 110 hectares
composto majoritariamente por carnaúba. "Todos passam a olhar diferente
para a preservação do meio ambiente. Quem ainda não tinha consciência de
que pode se extrair renda sem afetar a natureza, começa a ter. Esse foi
um trabalho singular, que trouxe orgulho, dignidade e renda", conclui
Afro-Negrão.
(Diário do Nordeste)