As perguntas que Belchior deixou
em suspenso quando partiu para o autoexílio continuam ecoando no
pensamento de quem conviveu com o cantor antes ou depois do "sumiço". Na
próxima terça-feira (30), a morte do cearense completa dois anos
e, ainda hoje, os amigos se voltam ao episódio na tentativa de montar o
quebra-cabeça para explicar a distância que ele se impôs dos palcos, da
música e das pessoas mais chegadas.
Belchior não é mesmo uma figura fácil de decifrar. Nunca foi. Talvez,
por isso mesmo, não haveria de sair de cena sem provocar alucinações e
muitas dúvidas. Ao longo de quatro meses, o Verso ouviu amigos
que conviveram com o cantor antes e durante a reclusão. O episódio
continua presente, direta ou indiretamente, como pano de fundo das
homenagens e recordações que as pessoas mais próximas ao cantor
sobralense preparam para reverenciá-lo.
Uma delas vem do radialista gaúcho Dogival Duarte, que mantém o hábito de se referir de forma abreviada ao autor de "Rapaz Latino-Americano".
Para ele, Antônio Carlos Belchior é apenas "Bel". O vício de linguagem
é, talvez, uma informalidade que adquiriu nos quase quatro anos de
convivência ininterruptos com o compositor em Santa Cruz do Sul.
Foi ele o primeiro anfitrião de Belchior na cidade
de médio porte, localizada no Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul,
onde o cantor passou os últimos anos de vida - sem cantar, como ele
enfatiza. Só na casa desse amigo, Belchior morou um ano e meio. Depois,
peregrinou por endereços de conhecidos até firmar residência na
confortável casa do bairro Santo Inácio, arranjada por Dogival, onde
faleceu o compositor cearense.
Não foram poucas as tentativas do amigo de ouvir a voz de Belchior
cantando. Todas em vão. Caiu na real quando certa vez repetiu o convite e
ganhou a seguinte resposta, em tom de brincadeira: "Pois não, pode
ligar o aparelho de som e escolher o CD que eu canto para o senhor".
Amigos esporádicos desde a década de 1980, o reencontro foi fruto do
acaso. Segundo Dogival, Belchior chegou à cidade, esbarrou com um
conhecido que lembrou da relação entre os dois e estes marcaram um
jantar na casa do radialista. Duas semanas depois, o compositor e a
mulher - Edna Assunção de Araújo - se instalaram na casa do amigo
gaúcho.
Belchior estava muito alegre, faceiro, não tinha sinal de nenhum problema ou doença. Mentalmente, conversava de fio a pavio, relembrava pessoas, shows... Não tinha depressão ou mau humor
Com a chegada do cearense, Dogival e outros amigos mantiveram em
segredo o paradeiro do cantor. Viraram espécies de guardiões dessa
história. Mesmo Dogival, jornalista e diretor de uma rádio local, não
quis espalhar que o cearense estava na cidade para não ferir a confiança
do amigo. "Ele dizia que as pessoas queriam matérias, fotos, autógrafo e
depois iam embora e ele ficava na mesma", justifica.
Também percebeu certo desinteresse do cantor de
manter contato com parentes e antigos amigos.
O jornalista narra pelo
menos dois episódios que deixaram isso claro para ele. Em um deles,
Dogival conta que entregou na mão de Belchior o telefone de uma irmã que
ligou em busca de notícias, mas ele nunca telefonou. Em outra ocasião,
comentou que iria encontrar com o baterista Monsieur Parron, que
acompanhava o artista em shows, e ouviu do cantor o pedido de discrição sobre o seu paradeiro. Dogival entendeu o recado.
Relato íntimo
Essa relação entre os dois, aprofundada principalmente nos anos mais enevoados sobre a vida do cantor, motivou Dogival a escrever um livro
sobre a temporada em que Belchior passou em Santa Cruz do Sul. O
radialista faz questão de frisar que o material - já escrito e que deve
ser publicado de maneira independente até junho - não tem a pretensão de
ser uma biografia, mas sim um relato afetivo e pessoal sobre a estada
do cantor na casa dele e de outros amigos.
Dogival diz que se sentiu autorizado a escrever o
material, já que em muitos momentos provocou o cantor sobre a escrita de
um livro a respeito da trajetória dele. Sempre recebia como resposta
uma autorização. "Pois não, pode escrever", dizia Belchior, segundo o amigo.
O livro está escrito, mas ainda passa por ajustes. Além do relato pessoal, a obra deve conter ainda uma entrevista inédita
que o cantor concedeu ao amigo jornalista, bem como um mapeamento sobre
as cidades pelas quais o cearense passou durante a temporada de
viagens.
Obra revisada
Antes de ir para o autoexílio, Belchior teria passado alguns dias na casa do professor José Gomes Neto,
em Florianópolis (SC). Foi a última vez que o amigo de mais de 30 anos
viu pessoalmente o cantor. Segundo Gomes, Belchior estava sem empresário
e tinha dificuldades de emplacar novos shows. No entanto, parecia animado com os projetos pensados pela esposa Edna, que, de acordo com o amigo, tinha tomado para si a responsabilidade de reposicionar Belchior no mercado. Os planos, entretanto, não vingaram.
Gomes era um velho conhecido do compositor de "Divina Comédia
Humana". A relação começou lá pelos anos 1980, quando depois de um show
na capital catarinense, o cantor recebeu o professor de Letras da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no camarim, gostou da
conversa e manifestou interesse em conhecer a biblioteca do docente.
Em determinada oportunidade, Gomes aproveitou a aproximação para
alertar Belchior sobre pequenas incorreções nas letras grafadas nos
encartes dos discos que interferiam, segundo disse à época, na
compreensão do sentido dos textos. Belchior se animou. Os dois
começaram, então, a revisar juntos todas as letras e sistematizar as
informações, já visando à publicação de um cancioneiro - espécie de
livro que reúne toda a obra de um compositor.
O trabalho se alongava em debates sobre a língua portuguesa que, por
óbvio, atraíam o compositor cearense. Muitas vezes, Gomes diz que
recebeu as letras ainda em elaboração para uma última revisão. A
atividade seguiu até o álbum Vício Elegante (1996), quando Gomes foi
enquadrado por Belchior: "Zezão, o cancioneiro não vai sair?".
O professor respondeu que o livro poderia ser publicado desde que o
cearense se comprometesse que nada mais iria escrever. Na avaliação de
Gomes, não tinha sentido publicar um livro com todas as letras de
Belchior se outras inéditas ainda pudessem surgir. "Eu disse que, se ele
morresse antes de mim, eu publicaria com uma grande vantagem: ele não
teria despesa e preocupação nenhuma", narra.
A promessa foi cumprida. O professor concluiu o cancioneiro neste ano
e já apresentou a obra em algumas cidades brasileiras, entre elas
Fortaleza, no último mês de março. Independente, o título ainda não está
disponível para compra em livrarias. O autor tenta viabilizar a
distribuição do material, buscando firmar parcerias para baratear a
publicação.
Gomes também se dedica a um novo projeto. Pretende publicar um livro com correspondências trocadas com Belchior
desde a década de 1980. Esse ainda não tem data para finalização. "Ele
enviava cartas de 40 páginas falando sobre tudo. E ele pedia para
publicar isso, está lá escrito", conta.
Nelas, o cantor fala sobre aspectos pessoais, mas que podem despertar
interesse dos admiradores.
"Por essas cartas, nós discutíamos nossas
coisas. O gosto literário, as nossas viagens, as brincadeiras dele. O Belchior era um gozador", relembra o professor. Este livro, assim como o cancioneiro, é visto por ele como uma homenagem ao compositor amigo.
Biografia autorizada
A intimidade de Belchior, assim como a relação com a música e a família, deve ser explorada também em uma biografia que a irmã, a socióloga Angela Belchior, prepara junto ao advogado capixaba Estevão Zizzi.
Há uma expectativa para a publicação do livro desde 2017, ano em que
Belchior morreu, que coincide com a publicação da primeira biografia
sobre o compositor cearense, escrita pelo jornalista Jotabê Medeiros.
À época, Angela e Estevão se contrapuseram a informações contidas na
obra e declararam que dariam versão própria dos fatos relatados. Dois
anos depois, o livro ainda não tem editora nem previsão de lançamento
oficial, embora o autor diga que o primeiro volume da obra esteja
pronto.
A publicação, de acordo com Estevão, deve sair em dois volumes. O
primeiro abarca um resumo sobre a família Belchior, que remonta ao
século 18, até o auge do disco "Alucinação" (1976).
Parceria
Ainda com o aval da irmã de Belchior, Zizzi também publicou, de
maneira independente, um livro com uma longa entrevista atribuída ao
cantor. O material, segundo ele, é um compilado de várias conversas
informais que o autor teve com o Belchior desde a década 1970.
Publicada no formato pingue-pongue, a entrevista foi redigida,
conforme o advogado, a partir de anotações que ele fazia durante
conversas em Fortaleza, São Paulo e Espírito Santo. O autor, porém, não
sabe precisar quantos encontros ocorreram nem existe uma divisão no
próprio livro sobre em que época estes relatos foram colhidos.
Sobre a biografia, Zizzi diz que a publicação trará documentos
inéditos sobre o compositor. O autor pretende lançá-lo ainda neste ano,
mas encontra descompassos com as editoras. "Várias já me ligaram, mas me
questionaram por que tantas informações no livro e eu não gostei disso.
Quiseram diminuir. Passei para outra editora de São Paulo e eles não
entenderam as propostas", disse.
Apenas no segundo volume, ainda não finalizado, o advogado e escritor
pretende falar sobre o "sumiço" do cantor. É que o autor ainda tem
dúvidas sobre parte dos acontecimentos no Rio Grande do Sul e decidiu
aguardar. "Não quero fazer um livro para vender. Quero uma biografia
final e eterna sobre ele", justifica a cautela.
Zizzi foi amigo de Belchior e se aproximou dele por intermédio da
irmã. Agora, eles assinam em conjunto livros sobre o cantor. Segundo
ele, ainda existe muita coisa não dita sobre o Antônio Carlos Belchior,
principalmente, em relação aos últimos anos. Mas o que, especificamente,
ainda é mistério.
Diário do Nordeste