Estudiosos do Ceará e Rio de Janeiro apontam que as forças de segurança, num contexto nacional, estariam mais preocupadas em legitimar uma ordem que, para existir, precisa eliminar o outro, seja ele "bandido" ou não
Não haveria clamor social, ou questionamento
sobre a atuação da Polícia Militar em Milagres se não houvesse reféns, e
apenas suspeitos, automaticamente qualificados de "bandidos" fossem
mortos. A avaliação é do Laboratório de Estudos e Pesquisa
Conflitualidade e Violência (Covio), da Universidade Estadual do Ceará
(Uece), e também da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Pesquisadores das duas instituições foram convidados a comentar o
contexto em que se insere o caso de Milagres e a constatação foi de
consenso: há um modelo ostensivo e letal que opera as forças de
segurança no País que não está dando conta do problema, sobretudo ao
piorá-lo.
"Quando um policial puxa o gatilho, com justificativa ou não, não
está fazendo isso sozinho. Existe uma racionalidade por trás. O que
precisa ser feito, e isso em nível nacional, é repensar a política de
Segurança Pública. Partimos do princípio de que toda vida tem valor. Ou
deveria ter. Infelizmente, o modus operandi e a estratégia de defesa, as
mortes acabam sendo justificadas. Na Chacina das Cajazeiras, em
Fortaleza, a primeira coisa que fizeram em relação às vítimas foi
verificar se tinham antecedentes criminais. Porque, se tivessem, já
estaria justificado", explica Rômulo Silva, sociólogo, jornalista e
doutorando da Uece. Ele é membro do Covio e diz que, sendo negro e da
periferia, carrega também os estigmas sociais.
Mas em relação ao caso de Milagres, cujos detalhes temos revelado nos
últimos meses e, inclusive, gerado mal-estar na Polícia Militar e no
Ministério Público?
Para o professor e pesquisador Geovani Facó, coordenador do Covio,
existe uma lógica de Estado, de poder, "e tudo o que estiver fora dela
vai ser compreendido, se não como inimigo, como algo perigoso. Primeiro,
criam-se percepções que vão se naturalizando, de classes e territórios
perigosos, sobre os quais é preciso o aumento do controle", explica o
pesquisador.
Mata e morre
Na prática, um controle que começaria pelos 'aparelhos de repressão':
"em nome de uma lógica de Estado, o instrumento é a Polícia, e o móvel
dessa ação instrumentalizada é a repressão. Nessa lógica, a Polícia é a
que mais mata, mas também a que mais morre. E não morrer só em função de
estar num confronto bélico, mas em função da carga psicológica que é
jogada em cima desses sujeitos, que são os policiais. Eles vão para o
front também a partir de um processo de formação cultural e
institucional fundamentada na lógica do inimigo".
O especialista em conflitualidade e violência aponta, para tragédias
como a de Milagres, uma dualidade: de um lado, investimento em viaturas,
armamentos; de outro, falta de qualificação técnica, mas num contexto
em que até mesmo os excessos fazem parte de uma lógica de Estado,
sobretudo quando há o que chamou de embuste de legitimidade para os
atos.
Cada região do País tem suas especificidades, isso deve ser
considerado em cada análise sobre o que é feito e o que pode ser mudado.
Na violência não seria diferente, mas também tem muito de igual. No Rio
de Janeiro, a "guerra contra o tráfico" criou, na visão das forças de
segurança, a lógica do inimigo. O risco disso é que chegamos ao nível da
intolerância. Em nome de um controle de Estado, as pessoas são julgadas
por cor, classe e o com quem anda. Se alguém é assassinado na favela,
seja pela Polícia ou não, a ótica é de que merecia. E o que não se
encaixar perfeitamente na lógica do merecimento fica na conta dos danos
colaterais. Pode ser o caso de Milagres. Mas ainda que não seja, não
chega a ser exceção", comenta Mariana Grassi, da Diretoria de Análise de
Políticas Públicas (Dapp), da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de
Janeiro.
Diário do Nordeste