Doze pessoas foram resgatadas do
trabalho análogo ao de escravo em minas de caulim nos municípios de Junco do
Seridó, na Paraíba, e Equador, no Rio Grande do Norte, em operação que começou
no dia 6 de junho. O grupo móvel de fiscalização responsabilizou beneficiadoras
do material pela exploração dos "homens-tatu", como são conhecidos os
que atuam na extração artesanal desse mineral na região, atividade que vem
deixando mortos e inválidos ao longo de anos. Desde 1995, mais de 53 mil
pessoas foram encontradas pelo governo federal em condição de escravidão
contemporânea.
O caulim é um mineral branco e
quimicamente inerte com um amplo leque de aplicações industriais. Séculos atrás
já era usado na fabricação de cerâmicas e porcelanas. Depois foi incorporado à
indústria de papel, borracha, plásticos, pesticidas, rações, fertilizantes,
produtos farmacêuticos. Também é empregado em refratários, tintas, adesivos,
cimento, inseticidas, gesso, detergentes, abrasivos, enchimentos, filtro para
produção de cerveja, chinelos e até cosméticos. Ele pode ser obtido de forma
mecânica ou manual.
A segunda maneira é adotada por
esses trabalhadores no Seridó: cava-se um poço no solo e, ao fundo, abrem-se
galerias. O precário sistema de içamento, com carretel, manivela e corda,
transporta pessoas para baixo e o pó branco para cima. Os poços encontrados
pela fiscalização contavam com profundidades entre 12,5 e 20 metros – mas, não
raro, ultrapassam três vezes isso. Após um improvisado rapel sem equipamentos
de segurança, chega-se a uma rede de túneis escavados. Não há vigas de
sustentação ou nenhum escoramento. Com picareta e pá, puxam toneladas de
minério.
"É muito comum desabar essas
galerias. Há pessoas entre os que encontramos que perderam familiares em
acidentes com desabamentos nas minas", afirmou ao blog a auditora fiscal
do trabalho Gislene Stacholski, que coordenou a operação.
De acordo com ela, os casos
configuraram condições degradantes (que submetendo o trabalhador a uma situação
abaixo da linha de dignidade, colocam em risco sua saúde, segurança e vida) –
um dos elementos que constitui a escravidão contemporânea, conforme o artigo
149 do Código Penal. A ação também contou com a participação do Ministério
Público do Trabalho, da Defensoria Publica da União e da Polícia Rodoviária
Federal.
Risco de vida
Eles estavam em condições perigosas,
com risco de morte e soterramento, trabalhando em um ambiente com pouco ar, sem
equipamentos de proteção e sem instalações sanitárias e água potável, segundo a
coordenadora. Chegavam a receber R$ 550,00 por mês, ou seja, bem abaixo do
salário mínimo e sem registro ou direitos trabalhistas.
A fiscalização considerou as
beneficiadoras como as responsáveis pelos trabalhadores, que produziam
exclusivamente para elas. "Em nosso entendimento, há sim vínculo
empregatício. Pessoas morrendo para a exploração do mineral, fornecendo apenas
para uma empresa, que dita as regras. É todo um sistema de cegueira deliberada,
que ninguém quer ver", afirma Stacholski. O total dos valores a serem
pagos giram em torno de R$ 45 mil. A fiscalização não informou o nome dos
empregadores, pois o processo de negociação para pagamento está em curso.
O Ministério Público do Trabalho
deve convocar as empresas compradoras dessas beneficiadoras para firmar um
termo de ajustamento de conduta de forma a evitar que continuem se valendo de
matéria prima produzida nessas condições. Auditores fiscais do trabalho e
procuradores do trabalho vêm atuando há anos na região para combater a
exploração do trabalho nas minas de caulim.
Em 2003, acompanhei uma ação de
fiscalização em Equador (RN), descendo por esses poços cavados no chão e
registrando os trabalhadores nessas galerias, para uma reportagem. Na ocasião,
o precário sistema de içamento se rompeu enquanto eu descia. Desci agarrado a uma
corda, que rompeu minhas mãos, deixando-as em carne viva. Por sorte, a câmera
tinha modo automático, porque ficou impossível fotografar ou escrever por um
bom tempo.
Claro que o pequeno drama pessoal
não é nada comparado com a realidade que esses grupos de trabalhadores,
compostos por amigos e familiares, enfrentam no dia a dia. Principalmente
quando as galerias não suportam o peso e soterram quem está na extremidade da
corda. Naquele ano, conversei com Luzia, que trabalhava fazendo faxina quando
recebeu a notícia de que seu filho havia sido atingido por um desmoronamento.
Desabamentos
"Mainha, arriou uma barreira
em cima do Neno."Admílson, 22 anos, explorava caulim nos arredores de
Equador. Durante o serviço, um dos túneis abertos por ele despencou sobre sua
cabeça e as das outras pessoas que trabalhavam junto. Vieram pedir os documentos
de Neno a Luzia.
– Por que? Vão levar ele para um
hospital?
– Não. Seu filho já está com
Deus.
Ele foi o único que faleceu,
decapitado. Só deixaram a mãe vê-lo bem depois, na hora do velório. "No
hospital, arrumaram ele." Luzia contou, com uma tranquilidade triste que,
além do filho, o caulim havia lhe roubado o irmão três décadas antes. José
também trabalhava nas banquetas e vivia com falta de ar. Um dia, quando o
problema tornou-se crônico, foi levado a um hospital e morreu por lá mesmo.
Silicose.
A doença atinge quem está exposto
constantemente a partículas sólidas muito pequenas – mesma condição que ainda
tira a vida de muitos ex-operários do amianto. Quando vão encher um caminhão,
os produtores de caulim chegam a ficar cobertos de poeira, mas sem máscaras e
instrumentos de proteção. O constante atrito na membrana pulmonar faz com que o
organismo reaja, criando uma lesão. A regeneração desse local leva à formação
de um tecido mais fibroso e menos elástico, diferenciado do tecido normal
pulmonar. Pequenas cicatrizes vão se acumulando ao longo do tempo, o pulmão vai
perdendo elasticidade e diminuindo a capacidade pulmonar. Até uma hora em que o
sistema entrA em colapso.
"Não mudou nada. O que nós
encontramos agora, foi o que você viu lá atrás", me explica a coordenadora
da operação deste mês de junho.
Além da diferença salarial,
direitos trabalhistas e indenizações por danos morais pleiteados aos trabalhadores,
os 12 terão direito a seguro-desemprego conferido aos resgatados da escravidão.
A ação é resultado do
rastreamento e do trabalho de inteligência do grupo móvel de fiscalização e
percorreu outras cidades de ambos estados. Em outros casos, não houve resgates,
mas foram entregues notificações para a regularização de irregularidades.
Não é a primeira vez que
auditores, procuradores, policiais e defensores resgatam pessoas em minas de
caulim. No mês passado, por exemplo, outros 12 trabalhadores foram resgatados
de condições análogas às de escravo na exploração do caulim, em Salgadinho
(PB), como noticiou este blog no dia 13 de maio. Eles também estavam em
condições degradantes de trabalho. Eram descidos por cordas a profundidades de
40 a 60 metros da superfície, sem equipamentos de proteção individual e sem
segurança.
UOL