Um problema grave e ainda difícil
de ser enfrentado. Desde 1967, o alcoolismo é considerado pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) uma doença crônica, com aspectos comportamentais. Mas, o
fato de o álcool ser uma droga lícita, atrelado a fatores culturais e sociais,
muitas vezes, faz com que o tratamento ao uso abusivo da substância sofra
interferência. No Ceará, no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em
Messejana, - única emergência psiquiátrica pública do Estado - , 180 dos 817
pacientes foram internados em decorrência do alcoolismo em 2019. Isto equivale
a 22% das internações de dependentes químicos na unidade e a um aumento de 73%
em relação a este tipo de internação, no ano anterior, quando 104 pacientes
deram entrada.
O total de 2018 representa 14%
dos dependentes químicos atendidos na unidade naquele ano. Para quem convive
com a dependência, manter-se afastado do álcool é uma condição permanentemente
desafiadora.
O comerciante Roberto (optamos
por usar nome fictício para preservar a identidade da fonte), morador do bairro
Parangaba passou, pelo menos, 19 anos, dos seus 65 anos, sob efeito direto do
álcool. Roberto é dependente químico e conta que o consumo teve início ainda
aos 12 anos. "Eu tomava umas doses. Depois, dos 12 aos 17 anos, eu costumava
dizer que bebia socialmente. Bebia muita caipirinha".
Processos
O uso abusivo da substância
avançou e aos 17, conta ele, começou a despertar a compulsão. "Queria
beber mais e mais", afirma. No intervalo até os 28 anos, Roberto abandonou
empregos pois não conseguia se manter sóbrio. "Fechei um escritório que eu
tinha e fui embora para São Paulo trabalhar no comércio".
Na nova cidade, Roberto bebia
diariamente. A dependência chegou a um grau tão severo que ele se desfez de uma
casa para pagar os prejuízos do consumo do álcool. Aos 29 anos, foi morar sob
um viaduto. Nessa etapa, a irmã o resgatou e o trouxe para Fortaleza. Conforme
Roberto, nesse tempo, os danos eram tantos que o seu casamento teve fim, e a
ex-esposa mudou de país com seu filho. Foram morar nos Estados Unidos. Um
vínculo quebrado quando o filho ainda era criança. Impactos do alcoolismo que
só foram dimensionados anos após as sucessivas perdas. Quando retornou a
Fortaleza, Roberto foi acolhido em um grupo de Alcoólicos Anônimos (AA).
"Na época que eu fui
resgatado, eu achava que ia morrer em seis meses. Não me alimentava direito,
estava com o corpo todo inchado. Quando parei de beber, eu entrei em estado
muito crítico. Comecei a ter delírios, ouvir vozes. Passei a me tremer. Não
conseguia segurar um copo na mão. Eu estava em um estado de loucura",
relata.
Vieram os primeiros 15 dias de
abstinência. Depois, a ausência de contato com o álcool se prolongou. Dura até
hoje. Roberto retomou o equilíbrio. Não de modo fácil. Mas amparado em ajudas.
O contato com o filho e a ex-esposa foi recuperado. Voltou a ter uma atividade
laboral. Aos 65 anos, Roberto auxilia outros dependentes nos 214 grupos de
Alcoólicos Anônimos espalhados da Capital.
Tratamento
Na época em que buscou auxílio,
conta Roberto nem sequer existiam os Centros de Atenção Psicossocial (Caps),
unidades de atendimento da rede de saúde mental. "Eu não tinha
consciência. Eu achava que era natural beber daquela forma. Nesse tempo não
tinha Caps. Se você fosse buscar ajuda, era mandado para um hospital tido como
'hospital de louco'. Hoje, vejo que é fundamental buscar ajuda médica. Há
importância no depoimento, na troca que fazemos no AA, mas temos que cuidar da
saúde e espírito", opina.
Na unidade de desintoxicação do
Hospital Mental, o psiquiatra Carlos Celso informa que o tratamento de
pacientes com dependência química de álcool é individualizado. Ele ressalta que
esse atendimento envolve médicos clínicos porque o uso abusivo de álcool causa
uma série de males ao organismo. "A pessoa que usa álcool de forma abusiva
e contínua por muito tempo vai ter uma série de danos como doenças hepáticas,
desnutrição, depressão de vitaminas específicas. E pode ter diversas outras
complicações clínicas que devem ser abordadas com cuidado".
Além disso, Carlos alerta que
"uma pessoa que usa grande quantidade de álcool, geralmente, por muito
tempo, e para de usar de uma vez, quando não abordada corretamente, pode
evoluir para um quadro grave. Tem que dar o suporte médico. Você estabiliza o
paciente. Os 15 primeiros dias de parada são decisivos".
Nessa etapa do tratamento, relata
o profissional, o objetivo é a abstinência e isto requer a participação
multiprofissional, pois ainda que exista a intervenção farmacológica - como a
aplicação de medicamentos que reduzem a vontade do uso - o momento é de
intervenção comportamental. "Vão ser abordadas as motivações para uso do
álcool, qual é o padrão, quais são os gatilhos, quais as situações que ele
perde o controle", reforça.
Cultura
O psiquiatra e professor do curso
de Medicina da UFC, Fábio Gomes enfatiza que o alcoolismo é um problema sério
de saúde pública que afeta 5% da população mundial. "Temos uma sociedade
imersa no álcool que tem 'bebemoração'. Tudo isso é uma característica da
cultura ocidental", relata. Além disso, analisa, por ser uma droga
socialmente aceita, o consumo de álcool é cultural. Isso no dia a dia, avalia,
pode ser dimensionado pela quantidade de eventos financiados pela indústria do
álcool no país.
Fábio também ressalta que as
bebidas destiladas como cachaça, uísque e vodca tendem a ter índices alcoólicos
superiores ao da cerveja, por exemplo. Mas, esta é uma bebida cujo consumo é
geralmente feito em grande quantidade. "Muitas vezes, é necessário
internar a pessoa porque ela não tem controle sobre o consumo. Mas, em vários
casos, a forma de controlar é evitar qualquer contato. Se a pessoa passa 24
horas sem beber, ótimo. Vamos tentar passar mais 40 horas. Até aprender a viver
sem o álcool", afirma.