O chamado passaporte imunológico,
que garantiria, com a imunidade ao coronavírus, o fim seguro ao distanciamento
social, continua a habitar o mundo da ficção científica. Um estudo da UFRJ
mostra que a maioria das pessoas com Covid-19 só desenvolve anticorpos
específicos contra o coronavírus, os IgGs, a partir de 20 dias após o
surgimento dos primeiros sintomas e não se sabe se eles de fato garantem
proteção. Ter anticorpos não é atestado de imunidade, apenas de exposição ao coronavírus.
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(Foto: Reprodução/Getty Images)
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Além disso, 40% das pessoas
continuam positivas em testes moleculares (RT-PCR) após 15 dias do aparecimento
dos sintomas, o que leva a sugerir que, potencialmente, continuam contagiosas,
mesmo que os sinais da doença tenham desaparecido. O dado preocupa porque 14
dias é o prazo de quarentena para pessoas com sintomas de Covid-19. E há ainda
outras que voltam a dar positivo após um resultado de exame molecular para o
vírus negativo.
O estudo analisou resultados de
testes de 648 pessoas e 1.536 amostras, o que o coloca entre os mais
expressivos do mundo — afirma Orlando Ferreira, professor de imunologia e um
dos coordenadores do Laboratório de Virologia Molecular (LVM/UFRJ), onde são
feitas as análises sorológicas. — Temos uma boa base de dados e vemos que ainda
é impossível determinar prazos sobre o surgimento e a manutenção da imunidade
de um indivíduo. Até o momento, há somente suposições.
Os testes são parte do trabalho
da força-tarefa contra o coronavírus da UFRJ e foram realizados em
profissionais de saúde de hospitais públicos e com o pessoal da universidade,
atendidos no Centro de Triagem de Covid-19 da UFRJ, coordenado pela professora
Terezinha Marta Pereira Pinto Castiñeiras.
O virologista Amílcar Tanuri,
também coordenador do LVM, destaca que só cerca de 30% dos indivíduos que
apresentam anticorpos IgGs realmente têm anticorpos neutralizantes. Para um
anticorpo oferecer proteção, ele precisa impedir que o vírus entre na célula e
somente alguns IgGs específicos fazem isso.
Os testes de sorologia, os que
detectam anticorpos, existentes no mercado hoje não são capazes de distinguir
os anticorpos neutralizantes. Há grupos de estudo no mundo que buscam
desenvolver esses exames, mas até agora nenhum está disponível. Um desses
grupos é da própria força-tarefa da UFRJ, liderado pela professora Leda Castilho,
do Laboratório de Engenharia de Cultivos Celulares.
Tanuri diz que, cerca de seis
meses após o mundo tomar conhecimento dos primeiros casos de Covid-19, ainda
não se sabe muito sobre o coronavírus. A Humanidade tem pressa em sair do
distanciamento social, mas a ciência não avança no mesmo ritmo que o vírus.
Um dos pioneiros no estudo do HIV
no Brasil, ele não hesita em responder que o coronavírus é muito mais
desafiador do que o causador da Aids. Ambos matam, mas o HIV leva anos entre a
infecção e o aparecimento dos sintomas e é menos contagioso do que o
SARS-Cov-2, que se espalha por via respiratória.
"A angústia é muito grande e
todos queremos respostas rápidas, mas não podemos arriscar a segurança da
população com decisões tomadas sem uma base sólida de conhecimento. A Covid-19
mata", diz Tanuri.
O mistério da imunidade natural
Anticorpos estão na base dos
exames de sorologia, seja os rápidos ou os feitos em laboratório. E as mais de
cem vacinas em teste no mundo também buscam estimular o organismo a
produzi-los. Porém, anticorpos não são a única defesa do corpo humano. Existe a
chamada imunidade celular, o ataque direto das células do sistema imunológico
ao causador da Covid-19.
A imunidade celular pode ser a
explicação de por que a maioria das pessoas infectadas pelo coronavírus não
desenvolve a Covid-19 ou apresenta apenas um quadro leve da doença. Há pessoas
infectadas que, 30 dias após o resultado de um exame molecular, ainda não têm
anticorpos. No entanto, permanecem saudáveis.
"Só os anticorpos não
explicam a resposta do sistema imunológico à Covid-19. Mortos pela doença
tinham anticorpos e nem por isso sobreviveram. O próprio agravamento da doença
parece ser determinado pela forma como o sistema de defesa reage ao coronavírus",
explica o oncologista e hematologista Daniel Tabak, integrante da comissão de
especialistas (ComCiênciaRJCOVID) que assessora do governo do Estado do Rio no
combate ao coronavírus.
O corpo humano possui duas linhas
de defesa contra patógenos. Uma é a produção de anticorpos. Eles são proteínas
feitas pelos linfócitos B, um tipo de célula de defesa. Sua função é evitar que
o vírus entre nas células. Mas o corpo conta também com os linfócitos T, que
conferem a chamada imunidade celular.
Cientistas estão convencidos que
a imunidade celular desempenha um papel importante. No entanto, ainda não
desenvolveram meios de identificar quem são as pessoas imunes e quais são
vulneráveis.
"Não temos testes de
anticorpos confiáveis, não conhecemos bem a imunidade celular para a Covid-19.
E, por isso, não existe qualquer justificativa neste momento para criar passes
livres ou passaportes de imunidade. Qualquer medida dessa seria
desastrosa", alerta Tabak.
Agência O Globo