EUA e China vivem uma nova Guerra Fria? A
pergunta foi levantada pelo historiador Odd Arne Westad em artigo na
revista Foreign Affairs, no ano passado, e termo voltou a ser usado por
analistas nas últimas semanas. A pandemia de coronavírus
colocou os dois países que vinham ensaiando uma trégua diplomática,
após um acordo comercial no fim de 2019, de novo em rota de colisão.
A pandemia escancarou o vácuo deixado pelos estadunidenses, que não
lideram uma resposta mundial à crise e preferiram apontar o dedo para os
erros da Organização Mundial de Saúde (OMS). Do outro lado, a China
busca espaço no tabuleiro internacional, enquanto enfrenta críticas com
relação ao grau de transparência e à velocidade de resposta no início
do surto.
Um relatório interno do Ministério da Segurança da China, publicado
pela agência Reuters, no dia 4, afirma que a crescente hostilidade
contra os chineses, provocada em parte pela retórica estadunidense,
havia chegado ao pior nível desde o massacre da Praça Tiananmen, em
1989. O texto concluiu que os EUA viam Pequim como uma ameaça econômica e de segurança.
Pessoas que leram o relatório disseram que ele foi encarado pela
comunidade de inteligência da China como uma nova versão do telegrama do
embaixador soviético Nikolai Novikov, de 1946, que enfatizava o perigo
da ambição militar dos EUA, e até hoje é considerado um dos marcos da
Guerra Fria.
"Eu sei que as pessoas se sentem desconfortáveis com o termo, mas
acho que temos de ser honestos e chamar isso pelo que é. Este é o começo
de uma nova Guerra Fria", afirmou esta semana Clete Willems,
ex-assessor da Casa Branca, em entrevista à emissora CNBC. "Se não
formos cuidadosos, a coisa pode piorar."
"Estamos no início de uma Guerra Fria", disse Orville Schell, diretor
do Centro de Relações EUA-China da Asia Society, em entrevista ao site
Business Insider. "Estamos caminhando cada vez mais para a posição de
adversários da China."
O presidente estadunidense, Donald Trump,
tem usado a pandemia para reforçar as bases protecionistas de sua
política comercial e argumentar que os EUA não podem depender de longas
cadeias globais de produção, em um recado direto à China, que respondeu,
em 2018, por mais de 40% da produção de insumos e equipamentos médicos
do mundo.
Ao mesmo tempo, segundo analistas, a busca por espaço geopolítico
entre EUA e China se diferencia em pelo menos dois aspectos da Guerra
Fria entre estadunidenses e soviéticos, durante a maior parte do século
20.
Primeiro, ao contrário da União Soviética, os chineses não têm como
objetivo espalhar o comunismo pelo mundo. O conflito com Washington é
econômico, não ideológico. Por fim, a diferença mais marcante é a rede
de relações comerciais e de investimentos que embaralham a relação entre
China e EUA - o que não havia entre estadunidenses e soviéticos.
Um dos sinais de que a pandemia se tornaria uma disputa política foi a
tentativa de Trump de colocar no coronavírus a alcunha de "vírus
chinês", enquanto Xi Jinping, o presidente da China, adotava uma
"diplomacia sanitária" agressiva.
O britânico Mark Malloch Brown, que foi vice-secretário-geral da ONU
na gestão de Kofi Annan, espera que o medo generalizado de um confronto
entre EUA e China provoque uma nova onda de valorização das respostas
multilaterais. Apesar de se dizer esperançoso, ele acredita que um
eventual fortalecimento do sistema internacional não será impulsionado
pelos estadunidenses, mesmo se Trump perder a eleição em novembro.
Os EUA assumiram papel de líderes na reorganização do mundo no
pós-guerra, que passou pela criação da ONU e do sistema de Bretton
Woods. A política de Trump e a aversão do presidente a organizações
multilaterais, no entanto, colocaram a Casa Branca em atrito até com
aliados e afastaram os EUA da posição de liderança na resolução de
crises, no exato momento em que a China busca uma liderança mundial
correspondente ao seu peso econômico.
Brown é atualmente conselheiro da consultoria de risco Eurasia e
integrante do comitê externo do FMI de aconselhamento nas respostas à
crise atual. Para ele, os EUA olham para a China como um rival, mas as
ambições chinesas são mais moderadas do que o que os estadunidenses
fazem parecer.
"A China ambiciona competir com os EUA pela liderança global em áreas
de baixo custo. No momento, vemos a entrega (pela China) de
equipamentos de proteção individual e respiradores. Mas a China não está
pronta nem tem o apetite para desafiar completamente os estadunidenses
neste sistema internacional", afirmou Brown, em entrevista ao Estadão.
A seis meses da eleição presidencial estadunidense, independentemente
das discussões sobre o assunto, apontar a China como culpada e a OMS
como leniente é conveniente para a retórica política de Trump. No
Partido Republicano, uma cartilha de aconselhamento de estratégia
eleitoral para candidatos ao Senado sugere culpar a China pela pandemia e
não abordar com eleitores as ações tomadas pela Casa Branca para conter
o vírus.
(Diário do Nordeste)