A Covid-19 já atingiu todas as comunidades tradicionais do Ceará e fez
vítimas em seis dos sete povos. Das mais de 14,5 mil famílias
ribeirinhas, extrativistas, indígenas, quilombolas, ciganas, pescadores
artesanais e povos de terreiro que vivem no Estado, a reportagem só não
confirmou mortes entre os ribeirinhos. As informações foram repassadas
por lideranças, entidades representativas e órgãos oficiais.
No contexto da pandemia, o avanço do vírus nas comunidades, que vivem
dos recursos naturais de seus territórios, preocupa pelas
vulnerabilidades históricas presentes. Entidades e lideranças cobram
medidas mais específicas para garantir a vida destas populações.
A população indígena apresenta a situação mais preocupante. Segundo a
Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), são mais de 170 casos
confirmados da doença, o que representa mais de 50% de todos os
infectados do Nordeste. Além disso, segundo a Sesai, o Estado já
registra quatro óbitos em terras indígenas, sendo três na Grande
Fortaleza e um no interior do Estado. Caucaia e Itarema são os
municípios que concentram o maior número de infectados.
"Tivemos muitas dificuldades de fazer o povo entender. Quando começou a
atingir a aldeia, foi caindo a ficha", relata Fernando Tremembé,
presidente do conselho local de saúde do povo Tremembé.
O professor indígena Itamar Tremembé avalia que a chegada da doença na
aldeia teve impacto na saúde psicológica dos indígenas. "A situação é
desesperadora. Desde dos anos 1500, lidamos com doenças, mas essa está
machucando demais", relata. A liderança conta que um psicólogo passou a
atuar na aldeia.
"Devido a esta vulnerabilidade, todas as questões que a pandemia coloca
em cena se agravam ainda mais", avalia o antropólogo da Universidade
Federal do Ceará, Kleyton Rattes. Ele pontua que a "morosidade na
demarcação de terras" dificulta o isolamento. "O fato de não ter terra
demarcada é um dos principais fatores. Alguns povos estão fazendo
barreiras sanitárias, mas sem apoio. Sem ter a terra demarcada, é
difícil ter controle sobre o território". Atualmente, apenas um dos 15
territórios indígenas no Ceará está com processo de demarcação
finalizado - o dos Tremembés.
Já entre os cerca de 15 mil quilombolas que vivem em 87 localidades
rurais do Estado, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
Negras, Rurais e Quilombolas (Conaq) já contabilizou um óbito causado
pela doença. A vítima foi um idoso de 85 anos de idade.
"Hoje temos sete territórios quilombolas com casos suspeitos ou
confirmados", relata Cristina Quilombola, coordenadora nacional da Conaq
e vice-coordenadora da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas
do Ceará.
"A pandemia aumentou a vulnerabilidade social dentro dos territórios
quilombolas", ressalta a representante. As principais reivindicações,
segundo ela, são pela aplicação de "testes rápidos nas famílias
quilombolas" e maior "assistência na saúde", além de fortalecimento na
garantia da segurança alimentar.
A mesma realidade reside nos povos de terreiros. Pelo menos 10 membros
já foram vítimas da Covid-19, segundo Ogan do ILE Axé Omindá, presidente
do Conselho Estadual de Igualdade Racial. Segundo ele, são pelo menos
20 infectados em Fortaleza. No interior, há dificuldade para fazer o
acompanhamento.
Já entre os ciganos, são duas mortes. Uma das reivindicações é a
desinfecção de bairros com comunidades ciganas em Sobral e Crateús, onde
ocorreram os casos mais graves. Além disso, a insegurança alimentar das
comunidades preocupa. "A maioria é de autônomos. Se o cigano não morrer
de Covid-19, morre de fome, de depressão. Já há um histórico", lamenta
Rogério Ribeiro, Instituto Povo Cigano do Brasil (ICB).
Retorno preocupante
Entre os cerca de seis mil pescadores artesanais que atuam no Ceará,
lideranças da categoria demonstram preocupação com o quadro atual. Com a
liberação da pesca da lagosta, que começou no último dia 1º, os
trabalhadores estão voltando à atividade. Os barcos passam de 10 a 15
dias no mar, com tripulação de cinco, seis homens. "Não há um exame de
temperatura e aplicação de teste rápido nos pescadores antes de entrarem
no mar", observa João Cláudio Rodrigues, presidente da Cooperativa dos
Armadores da Pesca do Ceará (Coopace).
Segundo a entidade, pelo menos uma morte por Covid-19 já foi registrada.
"Um pescador em Acaraú morreu ainda no barco, quando tentava retornar,
um dia depois, após passar mal", lamenta o representante.
Em estados como Santa Catarina e Bahia, foram criados protocolos para
funcionamento da atividade. No primeiro, por exemplo, os pescadores
devem sair imediatamente da praia após a pescaria. No Ceará, essas
medidas ainda não foram impostas. O presidente da Federação dos
Pescadores Artesanais do Ceará, Raimundo Félix, afirma que há vários
dias vem alertando para a ausência de políticas públicas de saúde
voltadas aos pescadores. "A nossa preocupação é grande. Os homens só
deveriam embarcar depois de examinados e testados."
O risco do contágio na zona costeira é visto como "preocupante" por
Andréa Camurça, assistente social e assessora de campo do Instituto
Terramar. "A chegada do novo coronavírus aos territórios vem junto a
recente crise ambiental do derramamento do petróleo", ressalta,
acrescentando que na zona costeira existem comunidades tradicionais "que
enfrentam cotidianamente conflitos fundiários e ambientais". "A
pandemia escancara uma situação de desigualdade que já existe".
O Terramar já acompanha seis municípios do litoral cearense, porém,
ampliou essa atuação. "Passamos a monitorar a questão da segurança
alimentar e as ações desenvolvidas a nível local para conter o avanço da
doença", pontua Camurça. Segundo levantamento com base em informações
das lideranças comunitárias e divulgadas pelas Prefeituras, já são 31
casos confirmados em nove comunidades de pescadores, marisqueiras e
catadores de caranguejo. Também estão inclusas comunidades ribeirinhas,
único povo tradicional sem registro de óbitos. Já entre os
extrativistas, há uma morte confirmada, a de uma senhora de 65 anos, em
Amontada.
Órgãos demandados
A reportagem tentou contato com todos os órgãos citados - prefeituras de
Beberibe e Itarema, Secretarias de Proteção Social (SPS) e Especial da
Saúde Indígena, Ministério do Meio Ambiente, e Secretarias da Saúde
(Sesa) e do Desenvolvimento Agrário (SDA), que acompanham comunidades
quilombolas.
A SDA destacou, em nota, que inclui comunidades quilombolas em projetos
produtivos em 41 municípios. Ressaltou ainda que investe na implantação
de abastecimento de água para 828 famílias quilombolas através dos
projetos Paulo Freire e São José. "Em obediência aos decretos de
calamidade pública e emergência sanitária, a Secretaria presta
assistência técnica remota", completa.
Questionada sobre as medidas adotadas especificamente para cada um dos
sete povos tradicionais do Ceará e se há um plano de testagem
específico, a Sesa limitou-se informar que "recebeu a notificação da
Defensoria Pública do Estado e foi respondida dentro do prazo". Os
outros órgãos não responderam até o fechamento desta edição.
O POVO