Uma pesquisa envolvendo mais de 150 cientistas brasileiros e de
outros países, fruto de uma cooperação que garantiu o sequenciamento do
genoma do novo coronavírus no Brasil, identificou 104 cepas (linhagens)
iniciais do vírus no País. Os pesquisadores analisaram 427 amostras, de
21 estados. Destas, três predominam. Uma das linhagens se concentra no
Ceará, conforme explica o pesquisador Darlan da Silva Cândido, cearense
de Quixeramobim, que estuda na Universidade Oxford, no Reino Unido, e é
um dos realizadores do estudo.
O achado desta cepa diferenciada no Ceará, conforme Darlan, não
precisa "causar alarme". O pesquisador explica que isto ocorre porque o
vírus passa por mutação. Algumas vezes, essa mudança pode influenciar de
modo a aumentar a transmissão ou a severidade dos casos. Mas, por
enquanto, não é possível fazer esse tipo de afirmação em relação às
linhagens encontradas no País. Outra cepa predominante está em São Paulo
e a terceira circula em 16 estados brasileiros. Nesta quinta-feira
(23), um artigo, fruto da pesquisa, foi publicado na revista Science, um
dos mais renomados periódicos científicos no mundo.
Você participou do sequenciamento do genoma do coronavírus no Brasil. E agora, do que trata a pesquisa e o artigo?
Nós estudamos vários aspectos diferentes da epidemia de coronavírus
especificamente no Brasil. Sabemos que tem uma pandemia acontecendo, mas
o nosso foco da universidade de Oxford e de várias instituições no
Brasil é justamente entender qual o quadro atual de coronavírus no País.
Então, a pesquisa tem dois lados. Um deles é o lado da epidemiologia. É
entender os casos. Quem são essas pessoas? Quais as características
dessas pessoas que se infectaram? Qual o desfecho dessa infecção? Ou
seja, esses pacientes se recuperaram, houve óbitos, e tentar entender
alguns aspectos relacionados a isso. Outro ponto que é o relacionado ao
artigo, é sobre o vírus em si. Aí que entra a questão do sequenciamento
do genoma. O sequenciamento dessa receita do vírus, essa identificação
do vírus. Então, quando a gente sequencia o genoma, eu consigo
identificar o vírus. Se eu sequencio o genoma de uma pessoa, eu consigo
identificar se ele é diferente do genoma do vírus da outra pessoa. E
vamos fazendo comparações. A partir desse processo, conseguimos
sequenciar 427 novas amostras do coronavírus no Brasil.
O que esse processo significa?
Essas 427 são do Brasil inteiro, de 21 estados. Conseguimos ter um
panorama interessante do que está acontecendo em várias regiões do País.
É claro que é importante comparar essa sequencia desses genomas entre
as amostras do Brasil, mas a gente também compara com as amostras de
outras regiões do mundo. E quando se faz isso, conseguimos entender de
onde vieram esses casos do Brasil. Sabemos que não tínhamos o
coronavírus no Brasil, então ele veio de algum lugar. Quando colocamos
isso no contexto que está no mundo, podemos entender como foi a
introdução e reconstruímos a história dessa epidemia no Brasil.
Esse comparativo é ir confrontando "sequências de números e
letras" achadas no Brasil e ver se bate com a de pessoas contaminadas em
outros países?
É um pouco mais complicado do que isso, mas a ideia por trás do
processo é exatamente isso. São modelos matemáticos complexos que fazem
essa comparação para a gente e vão agrupando essa sequencia. Vamos
reconstruindo e vamos entendendo.
Quais foram os achados e o que o artigo informa?
Nosso primeiro achado mais interessante é que dessas 427 amostras,
104 foram introduções internacionais no Brasil. Então, não foi
transmissão local. Foram importações. Alguém que voltou de algum outro
país, nesse caso, são países da Europa, e veio para o Brasil, trouxe o
vírus para cá. Esse número pode parecer grande, mas, na verdade, a gente
tem certeza que são números subestimados. Porque só temos 427 amostras.
Até o fim de abril, tínhamos mais de 80 mil casos no Brasil. Então, nós
sequenciamos uma a cada 200 casos. Se tivéssemos conseguido sequenciar
mais que isso, provavelmente teríamos encontrado mais importações. É
importante para entender que a epidemia que vivemos no Brasil não é
resultado de uma só introdução, mas de várias introduções.
O segundo achado é que apesar de termos tido mais de 100 introduções
no País, apenas três parecem contar a história geral do que está
acontecendo no Brasil. Então, como sabemos isso? Porque se formaram três
grupos de sequência brasileiras em nossas análises. Um grupo bem grande
é mais com sequências do Estado de São Paulo, o segundo com sequências
do Brasil todo, principalmente Sudeste, e o terceiro grupo é do Ceará.
Isso mostra que a epidemia que está acontecendo no Ceará é resultado de
uma introdução que é diferente daquilo que acontece no restante do País.
No Ceará, aparentemente a epidemia que nós vivemos hoje é resultado
de uma introdução da Europa. Talvez pelo Ceará ter reagido de forma
rápida e eficaz, ela também não se espalhou muito para outros lugares do
Brasil. Ela é uma linhagem característica do nosso Estado.
Essas diferenças de linhagem trazem consequência? É mais
identificação ou, por isso, a doença pode, por exemplo, ser mais forte
no Ceará?
Não sabemos ainda algumas informações. Quando eu falo de linhagem,
significa que o vírus do Ceará é um pouquinho diferente do vírus do
Sudeste, por exemplo. Isso a gente chama de mutação. Essas mutações são
um problema? Não necessariamente. Na maioria das vezes a mutação não é
um problema. Ela é um processo natural e vai acontecer. Mas, algumas
mutações levam a alterações no vírus que são importantes. Por exemplo,
existem mutações que podem aumentar a transmissão, que podem aumentar
severidade dos casos e por aí vai. Pode ser que essa diferença de
linhagem não seja significativa em termos de transmissão e severidade de
casos. Mas é algo que pode ser explorado em estudos mais para a frente.
Por que e como essas mutações acontecem?
Você imagina que o objetivo de qualquer espécie é se reproduzir e
manter-se viva. O objetivo do vírus é a mesma coisa. O vírus não infecta
o paciente para matar. Ele infecta porque ele precisa do paciente para
se multiplicar. Ele quer infectar o maior número de pessoas porque ele
quer manter a espécie. É nesse processo de se multiplicar que ocorrem
erros. Uma cópia acaba sendo diferente da outra. Quando as nossas
células estão se multiplicando tudo isso também acontece. Só que em uma
frequência muito menor do que o vírus. Essa é a diferença. O vírus muta
muito mais rápido do que a gente. Então, é essa mutação que pode
significar alguma coisa, como, por exemplo, ele se tornar resistente a
um medicamento.
Então, essa mutação pode fazer com que o remédio que serve para uma cepa não sirva para outra?
Isso pode acontecer. Pode ser que um medicamento só sirva para uma
cepa e não sirva para outra. Temos tratamento que são específicos para
cepas de determinados vírus, bactérias... Mas neste momento, no caso do
coronavírus, não temos um medicamento super eficaz. E não temos mutação
que parece ter efeito então em eficácia de medicamento.
Quando vocês encontram o Ceará com essa cepa diferenciada, já
estava no radar de pesquisa que estados que têm um fluxo internacional
maior poderiam apresentar algo assim?
Nós já esperávamos que alguns estados fossem apresentar isso,
principalmente os que são mais conectados em cada região. Mas realmente
foi uma surpresa vê o quão fechado parece que é a transmissão dentro do
Ceará. Pelas amostras que tivemos acesso, percebemos que é uma linhagem
bem específica do Ceará. Isso me deixou um pouco surpreso porque vemos
que para os outros estados do Brasil tivemos essa dispersão,
principalmente, no Sudeste. Não vemos isso no Ceará. Receber menos
linhagem também pode ser uma coisa positiva, porque ter várias linhagens
diferentes circulando ao mesmo tempo pode ser mais difícil ter um
controle da epidemia. Não queremos criar um alarmismo. É uma linhagem
diferente. Mas isso não quer dizer que é diferente porque é mais séria.
Nesse momento, estamos em um ponto que criamos mais perguntas do que
respostas. Respondemos uma pergunta e criamos outras 20. Com o tempo,
vamos conseguir entender essas coisas de uma forma melhor.
Tem como reconstituir e dizer de onde esse vírus veio?
Quase 100% de todas as introduções internacionais que aconteceram no
Brasil vieram da Europa. Das que a gente identificou. Uma relação que
podemos fazer é o fato do Ceará receber voos, e isso está ligando o
Ceará com a Europa. Quando a gente faz a reconstrução não é só no tempo,
não é só a data, e também no espaço. A gente consegue saber onde cada
uma dessas coisas aconteceu. Então, sabemos que quase 100% das linhagens
foram introduzidas da Europa e que a linhagem específica do Ceará é
introduzida a partir da Europa.
Qual o foco da pesquisa agora? Alguém vai continuar investigando essas diferentes linhagens?
O foco de continuar sequenciando mais amostras do Brasil. Temos
alguns estudos específicos que estão em andamento mas, neste momento,
não vamos parar para testar e falar 'oh essa mutação parece que está
causando isso, e aquela está causando aquilo'. Nosso foco é mais
descrever essa história e olhar para outras coisas relacionadas ao
sequenciamento, mas esse tipo de estudo é complexo e difícil de fazer.
Então, em geral, só parte para um estudo desse quando tem algum achado
que te leva a pensar que tem isso já envolvido. Por exemplo, se o Ceará
tivesse uma mortalidade muito mais alta do que qualquer Estado do
Brasil, nos levaria a pensar que a linhagem do Ceará é diferente e pode
ser que esteja relacionado a isso.
De onde vieram as amostras? Como é essa análise?
Essas amostras vêm de várias fontes diferentes. Do sistema público ao
privado. Essas amostras são as que a gente chama de residual. O que é
isso? Ela foi usada para o diagnóstico e elas são anonimizadas, não
temos acesso ao nome dos pacientes e elas vêm para a gente para serem
sequenciadas. Não são nem coletadas necessariamente para o
sequenciamento, mas elas são utilizadas para o sequenciamento porque se
entende que elas são amostras que restam do diagnóstico e podem ser
utilizadas para fins de pesquisa.
Quantos pesquisadores estão envolvidos nessa pesquisa?
Na verdade, esse trabalho é uma força-tarefa. Temos 15 instituições
diferentes no Brasil participando desse trabalho, várias instituições no
exterior que ajudaram na parte de análise de dados. Temos 78 autores e
temos uma lista de mais 80 pessoas que ajudaram mas que não entraram
exatamente como autores. Então, é muita gente e é muito trabalho.
(Diário do Nordeste)