Da depressão à dor crônica: autorização para cultivo medicinal de maconha ajuda no tratamento de pacientes no Ceará

 


Médicos que recomendam o uso terapêutico da maconha, contudo, geralmente só recorrem à alternativa quando outros tratamentos não surtem o efeito esperado para a melhora dos pacientes.

As autorizações judiciais se dividem entre dez municípios, da Região Metropolitana de Fortaleza ao interior do estado. Uma das autorizadas é, inclusive, presidente da Associação Medicinal do Ceará (AMECE). A fisioterapeuta Ana Carla conseguiu o habeas corpus em 2020, para tratar da saúde mental.

“Eu trato depressão e ansiedade. Eu tenho uma peculiaridade porque, por conta da depressão, eu tenho pensamentos suicidas. Eu faço o uso [da cannabis] para não tomar alopáticos”, explicou. O tipo de remédio evitado por Ana Carla é caracterizado por produzir efeitos contrários aos da doença tratada.

“Eu consegui o HC em agosto de 2020, no meio da pandemia, porque eu tive uma crise grande de ansiedade, por questões financeiras. Foi quando eu descobri, dentro do processo terapêutico, que era o meu principal gatilho de ansiedade. Fiquei três dias sem dormir”, lembrou a fisioterapeuta.

Ana Carla conseguiu a autorização judicial para cultivo da cannabis após fortes crises de ansiedade. — Foto: Ismael Soares/SVM

Ana Carla explicou que, nos momentos de lockdown da pandemia de Covid-19, ela passou por momentos de crise financeira porque trabalhava como professora de pilates — atividade que teve de ser interrompida.

“Meu negócio fechou. Por conta da clínica ser um ambiente fechado, nem os cursos eu poderia dar. E tive de reduzir meus atendimentos, que eram três por hora, para apenas um. Isso ficou insustentável”, complementou.

Em junho de 2022, um projeto de lei que sugere o uso medicinal de maconha foi aprovado pelo Conselho de Estadual de Saúde do Ceará (Cesau). A entidade realizou, à época, uma reunião ordinária com representantes do movimento canábico no estado. Contudo, o projeto ainda não avançou no Executivo ou Legislativo estadual.

Ceará tem projeto parado para flexibilizar uso medicinal da cannabis. — Foto: Ismael Soares/SVM

“Estamos tentando pressionar os deputados para que apresentem a proposta na Assembleia. E também estamos vendo uma forma de apresentar enquanto sociedade civil”, disse Italo Coelho, advogado ativista da luta antiproibicionista, e membro da Rede Reforma no Ceará. Ele explicou também que o projeto é fundamentado em quatro aspectos:

  • Capacitação de profissionais de saúde sobre as terapias à base de cannabis
  • Apoio às associações que acompanham os pacientes do estado
  • Incentivo à pesquisa, especialmente nas universidades, sobre os tratamentos
  • Distribuição dos medicamentos a base de cannabis no SUS, sem necessidade de judicialização

Autorizações judiciais para cultivo medicinal de cannabis no Ceará. — Foto: Arte g1

Prescrição médica

Cannabis pode ser utilizada do óleo à inalação em tratamento dos pacientes. — Foto: Ismael Soares/SVM

A psiquiatra Lisiane Cysne, que já prescreveu as medicações a base de cannabis, informou que estuda desde 2019 o uso medicinal da substância na prática clínica. “Prescrevo essa medicação para pacientes com patologias da minha área de atuação, como a ansiedade, a insônia, dor associada a outras comorbidades psiquiátricas e para as doenças de Parkinson e Alzheimer”, explicou a médica.

Ela, inclusive, reforçou para quais públicos o uso é mais indicado. “Em geral, a ausência de resposta às medicações alopáticas preconizadas para o tratamento dessas patologias ou a apresentação de efeitos colaterais que dificultam o uso dessas medicações pelos pacientes podem ser critérios para o uso dos canabinoides”, disse.

A experiência da fisioterapeuta Ana Carla reforça a prescrição da planta em contrapartida ao uso de outras medicações tradicionais. “Quando eu usei especificamente o alprazolam, percebi que ele me fazia dormir. Entrei em um ciclo de só querer dormir, eu percebi que estava com depressão. Eu percebi que podia até resolver a questão da minha depressão, mas eu estava letárgica, sem ânimo. Eu não tinha vida. Era só trabalhar e dormir”, disse.

A psiquiatra Lisiane Cysne estuda desde 2019 o uso medicinal maconha na prática clínica. — Foto: Ismael Soares/SVM

Contudo, Ana Carla pontuou que se preocupa em não depender unicamente da substância. “Eu mudei toda minha alimentação porque entendo que [a cannabis] é remédio. Como qualquer remédio, é um auxílio, não pode ser a minha âncora. Não posso ficar agarrada nisso para sempre. Tenho de fazer atividade física, terapia, meditação. Várias coisas”, comentou.

A psiquiatra comentou também em quais casos é necessária uma avaliação mais criteriosa antes da prescrição. “Como a cannabis medicinal é um medicamento, tem suas indicações — ainda muitas em pesquisa — e suas contra indicações. A cannabis medicinal é uma medicação metabolizada no fígado pelo citocromo P450, que é o mesmo responsável da metabolização de outros medicamentos, portanto pode haver interação com medicações como, por exemplo, a varfarina que é o anticoagulante oral mais utilizado no sistema de saúde”, explicou Lisiane.

Pedidos da cannabis

Defensoria Pública media pedidos de uso de medicamentos a base de cannabis no Ceará. — Foto: Ismael Soares/SVM

Além dos pacientes com autorização judicial, o Ceará tem também pacientes que recebem os medicamentos a base de cannabis já prontos. O g1 questionou se a Secretaria de Saúde faz um levantamento de quantos casos desses há no estado, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.

Yamara Lavor, supervisora do Núcleo de Defesa da Saúde da Defensoria Pública do Ceará, comentou sobre como os processos de solicitação acontecem no órgão. “Visando garantir o acesso ao direito à saúde dos pacientes que precisam do medicamento, que precisam da cannabis, a gente judicializa quando esse medicamento é negado”, explicou a supervisora.

Ela informou que é necessária a documentação pessoal e um relatório médico sugerindo o remédio em questão. Em 2022, a maioria dos casos foi de crianças com epilepsia ou paralisia cerebral. Entre os adultos, ela citou fibromialgia e depressão.

“O médico que acompanha o paciente precisa emitir um laudo médico constando o diagnóstico, a necessidade expressa desse medicamento com princípio ativo da cannabis, indicando a quantidade que ele vai utilizar por mês, o tempo de uso — se é indeterminado ou em período determinado”, comentou Yamara.

A defensora comentou também que muitos dos pedidos possuem informe dos médicos relatando que a solicitação por medicamento a base de cannabis veio após o uso de outros tratamentos convencionais, mas que não surtiram efeitos significantes.

“O caráter de urgência também precisa ser colocado, indicando que para aquele paciente é urgente o fornecimento do medicamento, sob risco de piora do quadro clínico. Muitos, inclusive, com risco de óbito, por exemplo, crianças com epilepsia ou paralisia cerebral que têm crises convulsivas diariamente, e que esse medicamento vai trazer um benefício terapêutico diferente e muito melhor do que outros medicamentos já utilizados”, complementou a supervisora.

Desinformação como problema

O advogado Italo Coelho apontado que a desinformação se apresenta como um dos maiores obstáculos sobre o uso medicinal da cannabis. — Foto: Ismael Soares/SVM

A Rede Reforma foi fundada e registrada em 2016, no Rio de Janeiro, como uma associação civil sem fins lucrativos, com natureza de direito privado, congregando advogados sensíveis às injustiças provocadas pela atual política de drogas no Brasil.

O advogado Italo Coelho pontuou que, dentro da vivência dele enquanto ativista, a desinformação se apresenta como um dos maiores obstáculos. Ele acredita que a forma de encarar a cannabis em uma perspectiva de segurança, como no combate às drogas, afeta a evolução do uso medicinal de remédios a base da planta.

“Um problema que ainda é grande é a falta de informação sobre as aplicabilidades da cannabis para várias coisas; tanto para tratamento de saúde, quanto para uso industrial”, comentou.

“Na minha atuação, enquanto advogado, tenho de ter paciência. Primeiro, saber que nem todo mundo tem compreensão dos aspectos científicos da questão. E também levar ao Judiciário essas informações baseadas na ciência, nos dados”, complementou. 

G1

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