A noite em que o Nordeste tremeu ainda está na memória de quem estava acordado naquela madrugada. Eram 29 minutos depois da meia-noite, e o calendário já marcava o dia 20 de novembro de 1980. O abalo teve magnitude 5,2 e alcance num raio de 600 quilômetros.
“Eu só lembro que a casa começou a tremer um pouco, corremos todos para fora. Ficamos muito assustados, ficamos a noite toda sentados na lateral da casa, só entramos de manhã”, recorda a costureira Maria de Fátima Sousa, hoje com 67 anos. Ela é moradora de Pacajus e estava, naquela noite, com os pais e o irmão.
O aposentado José Batista, de 66 anos, estava naquela noite no sítio do pai, na localidade de Lagoa de Sousa, no município de Cascavel. O sítio fica quase a meio caminho entre Cascavel e Pacajus.
Ele lembra que todos da casa sentiram o tremor: ele, o pai e os irmãos. E que, no dia seguinte, chegavam pessoas de outros distritos falando do abalo sísmico.
Em outro município, quem também acordou com a terra tremendo foi a futura esposa de José. Socorro Batista morava em Caucaia, cidade vizinha a Fortaleza.
“Acordei com a cama balançando. A minha amiga que estava comigo… A rede em que ela estava balançou tanto, que ela saltou da rede, eu também saí da cama. Eu tremia tanto achando que, naquela hora, a casa ia cair. No outro dia, tava uma rachadura, tinha quebrado a parede. E foi um assombro de todo mundo. Eu trabalhava numa loja, no outro dia todos comentavam do medo que cada um passou”, conta Socorro, que tem 68 anos e está aposentada.
Pacajus ou Chorozinho?
O nome de Pacajus entrou para a história da sismologia brasileira. Afinal, o tremor de terra de 1980 é o maior do Nordeste e o sétimo maior do Brasil (confira o ranking abaixo). Mas hoje, também é possível dizer que o epicentro do terremoto foi na cidade de Chorozinho.
- Chorozinho era um distrito de Pacajus e foi elevado à categoria de município em 1963.
- Em 1965, Chorozinho voltou a ser um distrito. Quando o terremoto aconteceu, em 1980, o registro ficou com Pacajus.
- Foi somente em 1987 que Chorozinho voltou a ser um município independente.
É por esse motivo que José Wilson Chaves, que era vereador de Pacajus à época, viajou até Fortaleza na manhã seguinte ao terremoto para pedir ajuda ao governador do Ceará. Aos 74 anos, José Wilson hoje é radialista e ex-prefeito da cidade.
Quando a terra tremeu, o político estava em casa com os dois filhos e a esposa. A família também acordou por causa do tremor. “Eu tive que levá-los para o meio da rua com medo que a casa caísse. Saímos da casa e fomos para a rua, e muitos populares também”, relembra.
No dia seguinte, era hora de verificar os danos. Havia famílias desabrigadas após desabamentos, muitas casas destelhadas e com paredes rachadas, pessoas que haviam armado redes debaixo dos cajueiros.
Segundo José Wilson, os locais mais atingidos foram o distrito de Chorozinho e as localidades de Timbaúba dos Marinheiros, Lagoa do Cedro, Lagoa do Martins, Triângulo de Quixadá, Vila Rosa e Morros. Os efeitos também foram fortes em Brito, distrito de Cascavel.
Por não pertencer ao grupo político do prefeito, José Wilson viajou de Fusca até a capital para pedir auxílio ao governador Virgílio Távora. Como o gestor havia ido a Brasília, ele e outro vereador foram recebidos pela então primeira-dama, Luíza Távora.
“Naquele tempo, não tinha telefone celular. Ela puxou um telefone com fio grande na mesa e pediu à secretária dela para ligar para o governador Virgílio. Ele pediu que ela tomasse todas as providências com os órgãos que pudessem dar os primeiros socorros nas primeiras horas”, detalha.
As primeiras medidas foram articuladas pelo Programa de Assistência às Favelas da Região Metropolitana de Fortaleza (Proafa), que existiu entre 1979 e 1990 como política estadual. José Wilson lembra exatamente de como fez os pedidos à primeira-dama.
O conjunto com casas recuperadas após o terremoto levou o nome da então primeira-dama do Ceará — Foto: Arquivo Pessoal/Francisco Brandão
“Nós queremos alimentação para esse povo que está debaixo dos cajueiros. Nós queremos medicamento para esse povo que está nervoso. Nós queremos barracas para serem armadas e esse povo entrar debaixo. E queremos a recuperação de todas as casas que foram danificadas pelo terremoto”, foram as palavras dele como vereador.
As solicitações foram atendidas. Além do amparo provisório com alimentação, assistência médica e auxílio financeiro, o governo estadual entregou, em junho do ano seguinte, 488 casas reformadas em um conjunto na localidade de Timbaúba dos Marinheiros.
Pelo menos duas igrejas danificadas
Em Chorozinho, nova igreja foi construída em formato de pirâmide e teve primeira missa em 1984 — Foto: Reprodução/Google Maps
Por estar mais perto do epicentro, duas igrejas tiveram as estruturas seriamente abaladas pelo terremoto. Uma delas foi a igreja de Santa Terezinha do Menino Jesus, onde hoje fica a matriz de Chorozinho. Segundo relatos da época, o forro desabou.
Como a estrutura ficou comprometida, o projeto de um novo templo foi aprovado em junho de 1981. Nos anos seguintes, a nova igreja em formato de pirâmide foi construída, com a primeira missa celebrada em 1984.
Outro templo danificado foi a capela de São Joaquim, no distrito de Timbaúba dos Marinheiros. No livro "História de Timbaúba", de Maria Edilva dos Santos, a autora, relembra brevemente os efeitos do tremor de terra na localidade.
Na localidade de Timbaúba dos Marinheiros, a capela de São Joaquim foi reconstruída do zero — Foto: Capela São Joaquim/Divulgação
"A maioria das famílias se abrigou em barracas de lona. A igreja e a escola foram as mais atingidas. A comunidade passou um ano sem assistir missas na igreja", diz o texto. O livro narra também que o arcebispo de Fortaleza à época, Dom Aloísio Lorscheider, chorou ao ver o estado da capela. O templo precisou ser demolido para uma nova construção.
O trecho do livro sobre Timbaúba está no trabalho de conclusão de curso de Francisco Brandão, ex-chefe do Núcleo de Sismologia na Defesa Civil do Estado do Ceará e atual servidor da Secretaria da Proteção Social (SPS). Na especialização em Metodologia do Ensino da Geografia, ele pesquisou sobre o terremoto de Pacajus.
"Só não houve óbito, mas aconteceu de tudo com as pessoas: clavícula quebrada, braço quebrado, nariz...", relembra Brandão.
Nos jornais e livros da época, houve o relato da morte de um bebê de quatro meses no povoado de Feijão, em Pacajus. No estudo de Brandão, no entanto, ele apresenta que não encontrou registro de óbito nos arquivos do município.
Das entrevistas conduzidas nas proximidades do epicentro, Brandão registrou algumas frases dos moradores:
- "Caiu prateleira, caiu garrafa, quebrou caneco, caiu lata."
- "Animal, cachorro, passarinho, não teve inseto que desse notícias desse tremor."
- "A terra tremeu e balançou e peneirou como nunca tinha acontecido."
Também nas capitais, como em Fortaleza e Teresina, houve pânico e prédios esvaziados, com muitas pessoas que correram para as ruas.
Quanto mais perto do epicentro do terremoto, maiores são os efeitos sentidos, explica Brandão. Além da escala Richter, que expressa a magnitude da energia liberada pelo abalo sísmico, existe a escala Mercalli. Nesta segunda escala, é avaliada a intensidade a partir dos danos e dos efeitos causados.
Alcance do terremoto de Pacajus
Grau | Exemplos de locais | O que acontece nesta intensidade |
Intensidade 7 (muito forte) | Pacajus | Todos se assustam e correm para as ruas. Pessoas que estão dirigindo veículos percebem o abalo de forma nítida. Edificações mal construídas podem sofrer danos importantes. Construções sólidas podem apresentar danos ligeiros. Ocorrem quedas de telhas, sacadas e estruturas da parte superior. |
Intensidade 6 (forte) | Cascavel | O abalo é percebido por todos. Muitos se assustam e correm para as ruas. Mobílias pesadas podem deslizar. Podem ocorrer danos leves em construções, como queda de rebocos e rachaduras em chaminés. |
Intensidade 5 (regular) | Fortaleza e Quixadá | O abalo é percebido por quase todos, despertando as pessoas. Objetos instáveis podem cair. Quebram-se louças e outros objetos frágeis. Portas e janelas podem abrir e fechar. Árvores e postes oscilam de forma perceptível. O reboco das paredes pode rachar. |
Intensidade 4 (medíocre) | Caucaia e Iguatu | O abalo é percebido dentro e fora das edificações. Pode acordar pessoas. As louças, portas e janelas trepidam. As paredes e os assoalhos rangem. |
Intensidade 3 (fraco) | Crato, Recife e Maceió | O abalo é percebido por pessoas em repouso no interior das edificações. Algumas pessoas não associam as vibrações com terremotos. Ouve-se um ruído surdo e grave, semelhante ao provocado pela passagem de um caminhão pesado. |
Nas cidades de São Luís, Natal e João Pessoa, há o registro de que o terremoto foi sentido, porém sem especificação quanto à intensidade. A escala Mercalli vai até a intensidade 12 (cataclisma), caracterizando um cenário de destruição total e muitas mortes.
Nordeste tem grande atividade sísmica
Região tem mais de 50 estações de monitoramento para identificar eventos sísmicos locais — Foto: Divulgação/LabSis/UFRN
O terremoto de Pacajus foi o maior abalo sísmico do Nordeste registrado até agora, com dados dos centros que compõem a Rede Sismográfica Brasileira (RSBR).
A ocorrência de novos tremores com magnitude semelhante ao episódio de Pacajus não é descartada na região, conforme explica Eduardo Menezes, geofísico do Laboratório Sismológico da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (LabSis/UFRN).
O pesquisador explica que esta atividade sísmica no Nordeste está concentrada principalmente no Ceará, no Rio Grande do Norte e em Pernambuco, com registros relevantes também no Recôncavo Baiano.
"A história já mostrou que nós temos essa recorrência. Em períodos longos de 30, 40, e 50 anos, podem ser observados tremores na ordem de 4,5 e de 5 (de magnitude). Então a gente pode ter um outro evento nessa ordem de grandeza de até 5,3. Só não se sabe onde nem quando", detalha o geofísico.
Confira os municípios com maiores tremores de terra no Brasil:
- Serra do Tombador (Mato Grosso): magnitude 6,2 em 31 de janeiro de 1955
- Jordão (Acre): magnitude 6,2 em 26 de novembro de 2015
- Vitória (Espírito Santo): magnitude 6,1 em 1º de março de 1955
- Tubarão (Santa Catarina): magnitude 5,5 em 28 de junho de 1939
- Codajás (Amazonas): magnitude 5,5 em 5 de agosto de 1983
- Miranda (Mato Grosso do Sul): magnitude 5,4 em 13 de fevereiro de 1964
- Pacajus (Ceará): magnitude 5,2 em 20 de novembro de 1980
- Porto dos Gaúchos (Mato Grosso): magnitude 5,2 em 21 de julho de 1998
- Caiena (Amapá): magnitude 5,2 em 8 de junho de 2006
- Tarauaca (Acre): magnitude 5,2 em 7 de abril de 2014
Os primeiros registros de abalos sísmicos no Nordeste brasileiro são do ano de 1808, quando um terremoto de 4.8 de magnitude teve provável epicentro em Apodi, no Rio Grande do Norte. As informações são do Serviço Geológico do Brasil.
Na região, é comum o registro de abalos de menores magnitudes e que, por vezes, são percebidos apenas pelas estações de monitoramento sísmico, como as estações estruturadas em parceria com o laboratório da UFRN.
Confira os municípios com maiores tremores de terra no Nordeste:
- Pacajus (Ceará): magnitude 5,2 em 20 de novembro de 1980
- João Câmara (Rio Grande do Norte): magnitude 5,1 em 30 de novembro de 1986
- Irauçuba (Ceará): magnitude 4,9 em 19 de abril de 1991
- Pereiro (Ceará): magnitude 4,6 em 23 de fevereiro de 1968
- Presidente Vargas (Maranhão): magnitude 4,6 em 3 de janeiro de 2017
- Maranguape (Ceará): magnitude 4,5 em 24 de novembro de 1919
- Palhano (Ceará): magnitude 4,5 em 26 de março de 1989
Os tremores de terra acontecem quando há atrito entre as placas tectônicas, que são grandes placas rochosas de dimensões continentais e que estão em constante movimento.
O que se aprende na escola é que o Brasil está no centro da Placa Sul-Americana. Por estar longe das bordas, o país estaria livre de terremotos catastróficos, como registrado em países como Chile e Japão.
No entanto, é importante lembrar que o país não está livre de abalos sísmicos, ressalta Rubson Maia, professor do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Mesmo estando no centro da placa, o Nordeste contém muitas regiões que ficam acima de falhas geológicas, como grandes rachaduras abaixo do solo. Como todas as placas do planeta estão se movendo, isso se reflete nas falhas e gera ondas e choques que resultam nos tremores de terra nestas regiões.
Conforme detalha Rubson, as falhas geológicas do Ceará estão nas zonas do Vale do Jaguaribe, na região costeira próxima à região metropolitana de Fortaleza, na região da cidade de Sobral e nas regiões entre as cidades de Juazeiro do Norte e Icó.
Estamos prontos para o próximo?
No Ceará, pesquisadores e representantes da Defesa Civil intensificam estudos e ações de conscientização — Foto: Divulgação/LabSis/UFRN
É consenso entre quem acompanha o tema: um novo terremoto na mesma magnitude de 1980 pode acontecer. Dependendo do lugar, ele pode até trazer mais estragos. Em Pacajus, o abalo afetou localidades pouco populosas com construções mais simples.
"Hoje, um evento nessa ordem de grandeza certamente seria um problema muito mais sério, até mesmo na Grande Fortaleza, pela evolução no crescimento das casas, dos prédios que hoje têm mais de 30 andares. Então o efeito desse tremor certamente traria um susto muito maior e, com certeza, dano na parte estrutural muito maior do que naquela época", reflete o geofísico Eduardo Menezes.
Ainda em 1986, o terremoto de 5,1 de magnitude em João Câmara, no Rio Grande do Norte, trouxe mais prejuízos com casas destruídas e pessoas apavoradas. Segundo Eduardo Menezes, a cidade teve cerca de 50 mil tremores em dez anos. Alguns moradores até se mudaram por medo.
Com mais de 50 estações de monitoramento no Nordeste, o LabSis faz o acompanhamento constante dos fenômenos na região, trazendo informações atualizadas e atuando nas localidades em parceria com prefeituras, órgãos de defesa civil e outros centros de pesquisa.
Quando esteve na Defesa Civil, por cerca de duas décadas, Francisco Brandão acompanhou mudanças em locais que registraram períodos de repetidos tremores de terra, como nas cidades de Meruoca e Palhano.
"Em Palhano, foram quase três anos de abalos sísmicos recorrentes. A gente chegou a discutir a concepção de uma edificação sismo-resistente. Foram construídas 20 casas obedecendo a essa linha, com o material mais robusto, com ferro nos pilares, a sustentação em 'V' nas paredes", conta Brandão.
Ele explica que alguns pedreiros de Meruoca também incorporaram essas técnicas em novas construções. Outra atividade realizada era a discussão sobre desastres naturais nas escolas.
Mesmo tendo dedicado a vida ao trabalho que ele classifica como "de formiguinha", ele lamenta que este cuidado não seja uma preocupação geral.
Ele alerta, ainda, que uma cidade como Fortaleza tem mais edificações e maior densidade populacional, além de estar sobre um solo arenoso. Isso significa que os tremores seriam mais fortes do que em uma cidade sobre solo rochoso, como é o caso de Meruoca.
Para o geógrafo Rubson Maia, esse despreparo pode ser prejudicial mesmo em abalos de menores magnitudes.
"Enquanto no Japão e no Chile a arquitetura é toda voltada para suportar sismos, um terremoto aqui na escala 4,0 é tão destrutivo quanto um na escala 6,0 lá no Japão. Porque a gente não tem essa tradição de considerar essa atividade sísmica", comenta Rubson.
Além de mudanças na estrutura, a conscientização das pessoas pode evitar ferimentos e problemas maiores. Por isso, é importante a articulação do monitoramento e do envolvimento com as comunidades para tranquilizar as pessoas e dar dicas do que fazer durante o tremor de terra.
Como ficar mais seguro em casos de abalos sísmicos:
- Proteger a cabeça de objetos ou estruturas que possam cair ou desabar
- Procurar abrigo abaixo de portais (estrutura superior das portas) ou mesas
- Não ficar em sacadas e janelas
- Em casas sem forro, evitar deslizamento de telhas acrescentando uma ripa extra entre as já existentes
- Evitar entrar em pânico e aguardar o tremor passar
Algumas destas informações estão no material didático em alusão aos 40 anos do Terremoto de Pacajus, lançado em 2020.
Do contato intenso com a população, Francisco Brandão lembra ainda de como os tremores de terra ganharam novos significados no imaginário dos moradores das cidades afetadas.
Um deles é a crença de que os abalos sísmicos seriam arrotos de um dragão que vive debaixo da terra em Palhano. Outro é a lenda de que um grande ser está se mexendo dentro da Serra da Ibiapaba, quase na divisa com o Piauí.
G1