Maconha medicinal: especialistas explicam 'status' da regulação e relatam impacto da proibição no avanço de pesquisas no Brasil

 Manifestantes realizam Marcha da Maconha no Centro de Campinas em 2014 — Foto: Giulia Cirilo/G1 Campinas

 Para responder esse questionamento, o g1 conversou com três especialistas em pesquisa sobre cannabis medicinal:

  • Ana Hounie, psiquiatra, pós-doutora pela Faculdade de Medicina da USP e presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia (Ambcann).
  • Monique Oliveira, doutora em saúde pública e pós-doutoranda na Unicamp.
  • Eliane Nunes, psquiatra e fundadora da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC).
Para elas, os preconceitos atribuídos à planta ao longo de décadas e os entraves que prejudicam as pesquisas estão entre as principais limitações.

  Nesta reportagem, você vai saber:

  1. O que é permitido?
  2. Os cenários no Congresso e no Conselho Federal de Medicina
  3. Contexto histórico e preconceito
  4. Entraves nas pesquisas
  5. Modelo internacional e o que se espera para o Brasil

(Esta reportagem faz parte de uma série especial do g1 Campinas sobre cannabis medicinal, que explica quais são os caminhos e desafios para ter acesso a esses produtos hoje no Brasil e mostra iniciativas individuais ecoletivas e pesquisas na região).

1. O que é permitido?

Porém, com a reclassificação, a maconha deixa de ocupar uma lista de substâncias consideradas "particularmente suscetíveis a abusos e à produção de efeitos danosos" e "sem capacidade de produzir vantagens terapêuticas", embora o valor terapêutico ainda não seja oficialmente considerado.

Para Monique Oliveira, esse é um primeiro passo, mas mudanças podem ser lentas porque:

  • O Brasil segue acordos da Organização das Nações Unidas (ONU) e mudanças como essa podem sim facilitar processos regulatórios no país;
  • Isso ajuda, inclusive, na realização de pesquisas científicas e de ações de conscientização;
  • Porém, como qualquer lei, a regulamentação e descriminalização da maconha dependem de muitas decisões;
  • E mesmo que uma legislação regulatória fosse aprovada hoje, ainda levaria tempo para que as mudanças fossem implementadas.

2. Congresso Federal e Conselho Federal de Medicina

Ao menos dois projetos de lei tramitam sobre o tema no Congresso, nenhum com previsão de ir à votação:

PL 5511/2023: busca autorizar a produção e o cultivo de cannabis para fins medicinais, além do cânhamo industrial e os produtos derivados dele. Atualmente, está em discussão na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária.

PL 89/2023: cria a Política Nacional de fornecimento gratuito de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de sanabidiol, em associação com outras substâncias canabinoides. Segue em tramitação no Comissão de Assuntos Econômicos.

Segundo a psiquiatra Ana Hounie, desde a suspensão da resolução, o debate não andou no conselho. "A gente fica numa insegurança jurídica e ética, porque o Conselho Federal de Medicina não está ainda se posicionando claramente", afirma.

O g1 perguntou ao CFM se houve avanço no debate sobre a regulamentação e se há previsão de uma nova resolução. Até a noite de sexta-feira (23), a resposta do conselho foi de que a demanda havia sido recebida.

3. Contexto histórico e preconceito

Manifestantes realizam Marcha da Maconha no Centro de Campinas em 2014 — Foto: Giulia Cirilo/G1 Campinas

Segundo Angela Aboin, mestranda em desenvolvimento humano e tecnologias na área de autismo e cannabis na Unesp, até a década de 1930, o uso da maconha era permitido no Brasil e aparecia em livros como solução para condições que, naquela época, ainda não tinham nome.

"Ensinavam o cultivo, a fazer extração. Não se tinha o nível de diagnóstico que temos hoje, mas já era usado para tratar o que conhecemos como epilepsia", comenta Angela Aboin.

Nos Estados Unidos, o lobby contra a planta teve início durante a 2ª Guerra Mundial, segundo a médica Ana Hounie. A pesquisadora afirma que a indústria do nylon lutou contra o uso da fibra do cânhamo, uma variedade da cannabis usada na produção principalmente de cordas.

Foi por meio da xenofobia contra mexicanos e da ligação da planta com africanos que a substância começou perder espaço para o preconceito nos Estados Unidos. Em 1938, acabou proibida em todo o território nacional.

Hounie acrescenta, ainda, que a relação da planta com os africanos que a introduziram no Brasil também foi origem de preconceito. "O uso da maconha era associado aos escravizados", contextualiza.

Monique Oliveira, que também é jornalista e divulgadora científica, detalha que muitos valores foram associados à cannabis e, embora pesquisas mostrem benefícios, ainda faltam reflexões.

"A cannabis, para além de ser uma substância e uma planta, é uma categoria social. Significa que você tem uma série de imagens e narrativas que foram construídas ao longo do tempo que, agora, cada indivíduo, cada setor de saúde, cada instituição, precisa se perguntar se essas percepções e narrativas estão de acordo com as evidências que estão sendo mostradas", afirma Oliveira.

4. Entrave nas pesquisas

Juntos, os fatores morais e a falta de regulamentação viram entrave para a ciência, apontam as pesquisadoras.

Isto porque pesquisadores e laboratórios também podem encontrar dificuldades para comprovar a eficiência terapêutica da cannabis. Uma vez que a planta é proibida, mantê-la armazenada para pesquisar ou realizar ensaios clínicos sem autorização configura crime.

Logo, ter apoio para estudar o tema também é difícil.

"Para fazer pesquisa, você precisa ter a matéria-prima. Mas, se a matéria-prima que você precisa é o THC, e no Brasil é proibido cultivar o THC, como é que fica?", questiona a médica Ana Hounie.

A psiquiatra Ana Hounie

“Por falta da regulamentação completa, nós pesquisadores não conseguimos trabalhar. Já vi vários depoimentos de alunos que querem pesquisar isso, mas quando pedem financiamento, pedem aprovação, são barrados”, completa a psiquiatra Eliane Nunes, fundadora da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC).

“Então, se nós tivéssemos uma regulamentação redondinha, a gente estaria não só pesquisando, mas produzindo, produzindo muito. Hoje tudo é feito por base de liminar, mas deveria ser regulamentar. Deveria existir uma regulamentação que deixasse claro o que é liberado para pesquisa”, completa.

Ana Hounie lembra que a Universidade de Santa Catarina conseguiu uma liminar que permitiu o cultivo para pesquisa. "Mas se o Congresso finalmente liberasse o cultivo para pesquisa e para as associações cultivarem e produzirem os remédios que os pacientes usam, seria muito melhor".

💸A falta de investimentos também atrapalha. "A gente tem pesquisa básica sendo produzida, alguns ensaios e alguns estudos clínicos também, mas para você chegar numa parceria, para você ter produção, vai ser iniciativa privada. Quem vai ter mais condições de oferecer a um preço acessível? Vai ser um laboratório público?”, questiona Monique.

Por isso, Angela Aboin defende que as associações, que buscam pesquisar e desenvolver soluções medicinais acessíveis, entrem na conta.

A indústria não precisa de apoio. Ela já tem apoio próprio, ela já tem verbas, mas as associações não têm. A gente entende que precisa ter uma aproximação dos poderes públicos para poder, não só produzir, mas produzir com segurança, eficácia e respeito”, aponta Aboin.

5. Modelo internacional e o que se espera para o Brasil

Trabalhador colhe folhas de maconha em plantação perto de Nazaré, em Israel. Apesar de ser considerada uma droga ilegal no país, a maconha é usada legalmente por israelenses com propósitos medicinais. — Foto: Amir Cohen/Reuters

E afinal, o que seria o ideal para o Brasil? Ana Hounie é taxativa. "O ideal seria a permissão do cultivo aqui no Brasil para fazer pesquisa e pelas associações".

"Hoje em dia tem várias associações que estão trabalhando com desobediência civil, cultivam e produzem, e muitas têm processo já na Justiça pedindo a autorização, algumas receberam, outras não", completa a pesquisadora.

Ela indica como modelo internacional a experiência de Israel, onde, segundo ela, o governo tem um programa de cannabis medicinal em que os médicos que querem trabalhar precisam fazer curso e obter certificação para poder estar na lista dos que prescrevem o tratamento.

"Então não é qualquer médico que vai prescrever, é muito controlado, você tem que fazer o curso, tem que demonstrar que tem conhecimento e o governo subsidia os remédios. Você tem conhecimento e tem produtos à disposição para serem comprados e também para serem fornecidos pelo próprio governo, e eles estão cada vez mais ampliando as indicações, então eu acho que o modelo de Israel é um modelo excelente", completa.

Eliane Nunes assinou uma moção apresentada na 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Domingo Sávio em dezembro de 2023. No texto, a psiquiatra apresenta propostas que pudessem guiar a regulamentar e desburocratizar o acesso à maconha medicinal.

Entre os principais pontos citados pela especialista estão a retirada da cannabis da lista de plantas proibidas e a autorização do cultivo, isto é, sem que o interessado precise acionar a Justiça. O manifesto foi validado pelo Conselho Nacional de Saúde na quarta-feira (21).

Isso significa que ele pode ser levado em consideração para a criação de políticas públicas e novas regulações. “Regulamentação existe hoje, mas ela funciona para quem tem dinheiro para comprar na farmácia ou importar. Ela não é justa para pacientes que podem fazer o seu cultivo em casa e ela não é justa para o Sistema Único de Saúde, que paga para atender demandas judiciais”.

Angela Aboin, que também é coordenadora da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica do Brasil (FactBrasil), acredita que é necessário tirar o tema do sentido criminal e elevá-lo a uma questão de saúde pública.

A partir disso, para ela, a informação será o principal caminho para uma mudança que atinja a todos, da população em geral aos tomadores de decisões.

“Precisamos dar liberdade para as pessoas falarem. É básico e está dentro da descriminalização. Isso é essencial para que a gente possa construir novos conceitos em relação à planta. Precisamos educar as pessoas sobre para que serve a maconha. Precisamos construir uma nova política de droga, que é fundamental para evolução da sociedade”, afirma Aboin.

Já Monique Oliveira lembra que ainda é preciso cautela. "Ter uma percepção super valorizadora da cannabis, como se fosse benéfica para tudo, ou uma percepção de que não serve pra nada, não é bem assim. Para quê serve, para quem serve, como serve?", indaga.

A doutora afirma que, para além do ativismo, é preciso definir objetivos e lutar por evidências. Afinal, o que esperamos da maconha medicinal? É por meio da ciência que a saúde, como um todo, e pacientes encontrarão respostas e serão beneficiados.

“Quando a gente sai de um debate um pouco mais polarizante e chega a pensar nos nossos objetivos, pensar no que a gente quer alcançar e quais são os riscos para cada situação, a gente consegue um debate que ajuda melhor as pessoas”.

G1

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