Foto: Thiago Gadelha |
Dos 74 anos de vida até aqui, mais de dois já passam pelos corredores do Hospital Mental de Messejana (HSM), em Fortaleza. João* foi internado lá em dezembro de 2022 e, mesmo após a alta, permaneceu. Fora dos muros da unidade, o idoso não tem para onde ir.
Situação similar é vivenciada, hoje, por outras 48 pessoas com idades entre 60 e 83 anos, que estão “morando” em unidades de saúde estaduais ou municipais do Ceará, porque não há vagas em acolhimentos públicos nem possibilidade de vínculo familiar.
Os dados são do Ministério Público do Ceará (MPCE), levantados junto às promotorias de Justiça de Fortaleza. Os órgãos recebem as notificações dos próprios hospitais, que buscam auxílio para direcionar pacientes “que estão de alta médica, mas não alta social”.
Só na Casa de Cuidados do Ceará, unidade da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) que deveria funcionar como uma transição entre hospital e residência, há 18 pacientes “ocupando uma vaga que é temporária”, como pontua Alexandre Alcântara, promotor de Justiça do MPCE.
“As pessoas deveriam ir lá para reabilitação, passar 50 a 60 dias e ir para casa. Mas há idosos morando lá”, lamenta. “Conseguimos detectar cerca de 50 situações dessas só em Fortaleza, principalmente na rede estadual. E o Estado não quer aumentar as vagas do Olavo Bilac (único abrigo público estadual para idosos)”, critica Alexandre.
Além da Casa de Cuidados, há idosos “morando” nos Gonzaguinhas da Barra do Ceará e do José Walter, no Frotinha da Parangaba, nos Hospitais da Mulher, Geral de Fortaleza (HGF), Estadual Leonardo Da Vinci (HELV), e em unidades como Instituto do Câncer do Ceará (ICC) e Santa Casa de Misericórdia.
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pacientes chegaram a constar na lista do MPCE como “moradores” de hospitais, mas sete tiveram alta efetiva e dois faleceram nas unidades de saúde.
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Foto: Thiago Gadelha |
O promotor Alexandre Alcântara analisa que o cenário resulta do envelhecimento populacional, associado à vulnerabilidade social das pessoas e à carência de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) públicas: no Ceará, só existe uma estadual; em Fortaleza, nenhuma municipal.
“Isso pode inviabilizar o sistema de saúde estadual. É terrível, porque o idoso corre o risco de infecção e ainda está tomando vaga de leito de alguém que precisa. O SUAS (Sistema Único de Assistência Social) precisa acompanhar o SUS (Sistema Único de Saúde). Tem que melhorar muito, senão teremos uma inviabilidade completa”, pondera Alexandre.
O promotor lembra que, ainda em 2013, foi feita uma recomendação ao Governo do Estado para expandir o número de vagas do Abrigo Olavo Bilac de 70 para 140 residentes. “Houve uma negativa, alegando que essa política deveria ser municipal”, afirma.
Responsabilidade da família
O processo de desospitalização de idosos sem alta social “por ausência de responsável familiar para acolhimento” foi iniciado em janeiro deste ano na rede hospitalar da capital, segundo informa a Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), por meio da Coordenadoria da Pessoa Idosa e da Coordenadoria de Assistência Social.
“Ao todo, 15 idosos já foram reintegrados às famílias de origem e 33 estão em processo de identificação familiar”, pontua a Pasta, em nota. A SDHDS afirma, ainda, que busca localizar vagas disponíveis em ILPIs da rede privada e da estadual para transferência dos pacientes.
Também em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) diz que, ao identificar casos de abandono familiar, “aciona imediatamente a SDHDS para avaliação e encaminhamento adequado, seguindo o que orienta a rede de assistência social do município”.
A SMS reforça que “realiza a busca ativa de familiares e de responsáveis dos pacientes idosos que permanecem internados mesmo após a alta médica, com o objetivo de viabilizar a alta social e garantir o devido acolhimento fora do ambiente hospitalar”.
A Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) foi procurada para se posicionar em relação aos idosos vivendo em unidades do Governo do Estado e sobre os impactos dessa longa permanência, já que ela inviabiliza a rotatividade de leitos importantes para a assistência.
Em nota, a Pasta informou apenas que "os idosos internados nas unidades da rede seguem acompanhados pelas equipes assistenciais", ressaltando ainda que "acompanha as discussões referentes às ILPIs e colabora com as solicitações do Ministério Público do Ceará".
O abandono de pessoa idosa em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência ou similares é crime previsto no Estatuto da Pessoa Idosa, instituído pela lei federal nº 10.741, de 2003. Não prover as necessidades básicas desses idosos, quando obrigado por lei ou mandado, também é crime.
A advogada Patrícia Viana, presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Ceará (OAB/CE), reforça: “a família tem, sim, responsabilidade”.
“Quando falamos em família, falamos no caso de violência por abandono. Ela não pode abandonar a pessoa idosa. É uma responsabilidade compartilhada”, declara, referindo-se à função de proteção que Estado e Município também devem exercer.
A pena para quem incorrer nessas ações é de detenção de seis meses a três anos, além de multa, cujo valor não é estabelecido no texto legal.
Patrícia observa ainda que a ampliação da rede de acolhimento, por meio de ILPIs públicas, é urgente “seja para idosos que realmente não têm o apoio da família, seja para os que não têm condições financeiras ou idosos transferidos de outras instituições ou até de hospitais”.
“Se cada ente desses fizer sua parte, esses idosos vão ser protegidos e apoiados”, complementa a advogada.
‘Escassas relações’
Além de expor uma fratura da política de assistência social do Ceará, a longa permanência de idosos em hospitais também reflete a fragilidade de vínculos sociais e familiares que eles enfrentam, “das escassas relações que mantêm”, como pondera Elizio Loiola, presidente da Associação Cearense Pró-Idosos (Acepi).
“É de fundamental importância que essa cidade de Fortaleza tenha, rapidamente, pelo menos uma ILPI, para que a gente tente colocar essas pessoas”, frisa.
Em dezembro de 2024, a Prefeitura de Fortaleza assinou o Protocolo de Intenções e Contrato de Locação para implantação da primeira ILPI pública do município, com capacidade para acolher 100 idosos com diferentes níveis de dependência.
O presidente da Acepi reflete, ainda, que é necessário integrar políticas públicas, por meio dos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência de Assistência Social (Creas), para fortalecer vínculos e evitar o abandono.
“Para que essas pessoas tenham a oportunidade de, quando da alta médica e da alta social, retornar para o aconchego dos seus familiares, das pessoas que têm correlação de afetos e efetivamente trabalharem com relação a esse retorno, que deve ser sempre com qualidade, com sempre muito consideração e respeito”, finaliza.
(Diário do Nordeste)