Primeira mastectomia trans pelo SUS é realizada no Ceará: 'Liberdade indescritível'

 




Mais um passo foi dado na luta da população trans por dignidade e acesso à saúde pública no Ceará. No último dia 19 de maio, a primeira mastectomia em uma pessoa transgênero pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Ceará foi realizada na Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac), em Fortaleza.

Quem viveu esse momento histórico na pele foi Arthur Gael Lima, 29 anos, homem trans, pai de três filhos, morador de Maracanaú. Ele, que reforça diversas vezes que carrega uma luta coletiva, comemorou a conquista. 

“Ainda não tenho nem palavras para descrever como foi. Não tem o que dizer. É uma liberdade indescritível”, disse Arthur, em entrevista ao Diário do Nordeste. “Desde que me identifico como homem trans, já não falo só por mim. Carrego comigo outras histórias, outras lutas”.

Para ele, essa cirurgia não foi apenas um procedimento médico, mas o fim de uma longa caminhada. "Eu sempre digo que a gente não se 'descobre'. Saber que é trans, a gente sempre soube, mas agora a gente aceita. O meu processo de aceitação começou durante a pandemia", compartilhou.

Nessa caminhada, marcada por muita luta e acolhimento, Arthur passou por anos de acompanhamento com psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e assistentes sociais — como manda o protocolo do SUS — até ser encaminhado para um médico. 

Gael ao lado da médica que realizou a mastectomia
Foto: Arquivo pessoal

 

A cirurgia foi viabilizada pela contratualização entre o Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Ceará (CH-UFC/Ebserh) e a Prefeitura de Fortaleza. Conforme a Meac, a mastectomia faz parte de um projeto da instituição que prevê um procedimento por mês. Dessa forma, outras pessoas trans, como Arthur Gael, poderão ter acesso a esse serviço. 

Em meio à recuperação da cirurgia, ele destacou que este é um movimento essencial na construção de uma rede de acolhimento e afirmação para pessoas trans no Estado.

Ao Diário do Nordeste, a chefe do serviço de Mastologia da MEAC-UFC/Ebserh, Milena Holanda, afirmou que duas cirurgias do tipo chegaram a ser realizadas há sete anos. No entanto, ocorreram "sem contratualização, em ambiente de ensino e pesquisa na própria Meac-UFC/Ebserh".

Para ter acesso ao serviço de mastectomia pelo SUS, a médica Milena detalhou que "o primeiro passo é estar inserido em serviço de atendimento à pessoa trans. Quando cumpre todos os requisitos exigidos é encaminhado para mastectomia na Meac-UFC/Ebserh".

Processo de transição

O processo de transição de Arthur Gael começou ainda em 2020, durante a pandemia. No Serviço de Ambulatório Transdisciplinar para Pessoas Transgênero, o Sertrans, do Governo do Estado, ele encontrou a rede de apoio que precisava para tirar as principais dúvidas sobre o assunto e reunir a coragem necessária para seguir com a mudança. 

O Sertrans, que antes tinha seu espeço físico localizado no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), em Messejana, funciona, desde março deste ano, no Hospital Universitário do Ceará (HUC), no bairro Itaperi, em Fortaleza.

No dia 19 de setembro de 2021, iniciou o tratamento hormonal. “Foi um caminho feito com cuidado, com segurança”, disse. Em agosto de 2024, chegou à Maternidade-Escola, local em que realizou o parto de seus três filhos: Gabriel, Victória, e Gabriela. Desde a entrada, destacou só ter recebido acolhimento e respeito da equipe profissional da instituição. 

“Em nenhum momento fui desrespeitado ou sofri algum tipo de preconceito. Sempre fui tratado no meu nome, no prefixo 'ele'. As outras pacientes me trataram com respeito e de igual para igual. Me senti normal”.

O Sertrans oferece assistência multiprofissional, incluindo endocrinologia, psiquiatria, psicologia, serviço social e enfermagem, além de exames laboratoriais e consultas com especialistas. O ambulatório funciona de segunda a sexta, das 8h às 12h e 13h às 17h. Para ter acesso ao Ambulatório, o paciente precisa ser encaminhado pela Unidade Básica de Saúde (UBS). 

Cirurgia realizada em maio 

No entanto, ao buscar uma profissional da unidade hospitalar que trabalhava com casos de câncer de mama, descobriu que ela não operaria. “Quando me mandaram para a maternidade, me encaminharam para a oncologia. A médica me deu uma negativa, porque só atendia pacientes com câncer”.

Foi em fevereiro deste ano que a secretária da médica Cristiane Coutinho, que também trabalha na Meac, entrou em contato com ele. "Quando eu conheci a doutora Cris, a primeira coisa que ela fez foi me dar um abraço e dizer: ‘muito bom você estar aqui, vou resolver seu problema’". 

Imagem do paciente Gael e da médica Cristiane Coutinho
Após primeira consulta com Cristiane Coutinho, Gael pediu um registro ao lado da médica para marcar o momento / Foto: Arquivo pessoal


Assim, no dia 19 de maio deste ano, realizou a cirurgia, conduzida com todo o suporte da equipe multidisciplinar do hospital. “Quando acordei da anestesia, queria sair correndo. Queria viver logo essa nova liberdade”, contou. Em breve, espera já estar caminhando na praia, sem camisa, sentindo o sol inteiro na pele. “Agora estou realizado, muito feliz. Me sentindo livre.”

Ao olhar para tudo que aconteceu, Arthur sabe que esse marco não é só dele. “Nunca carrego só o Gael. Carrego a luta de todos nós. As coisas, de fato, estão acontecendo.”




(DN)

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