Terras de Jeri: perícia aponta "erro" de cartório e Justiça vai decidir


 



Já é quase um ano desde o início da polêmica. Agora o litígio na vila de Jeri, no complicado impasse que mobiliza moradores e comerciantes de um lado e, do outro, a mulher que se apresenta como possível única dona das terras, foi levado oficialmente, pelo próprio Estado do Ceará, para ter uma definição nas vias judiciais. O que deverá arrastar ainda mais o tempo de um desfecho para o caso.

Na última quarta-feira, 27, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) decidiu suspender o acordo que mantinha com a empresária Iracema Correia São Tiago e protocolou uma ação ordinária que pede à Justiça que decida se há validade nos documentos de matrícula da fazenda Junco I. O imóvel pertence à empresária, de 79 anos. Ela alega ser a dona única das terras porque sua propriedade teria cerca de 80% da área sobreposta à vila da praia famosa.

O mote para apresentar a ação foi a descoberta de um suposto erro que teria sido cometido pelo cartório Liberty Morais, da comarca de Jijoca de Jericoacoara. A inconsistência encontrada, segundo a PGE, foi a averbação feita em 2007 de um georreferenciamento (nova medição feita) citado para a unificação de três matrículas imobiliárias (números 542, 543 e 544) que formaram o imóvel (nº 545).

Uma dessas matrículas seria uma área de posse, mas foi indevidamente "incorporada" à propriedade pelo cartório, segundo está descrito na ação. O Estado vai questionar a legalidade da averbação e cobra a retificação de registro do imóvel.

Ao O POVO, o procurador geral do Estado, Rafael Machado Moraes, afirmou que "a questão se teve grilagem, se não teve grilagem, isso vai ser um assunto resolvido pela Justiça. Nós não temos elementos para dizer categoricamente. Vai ser resolvido pela Justiça".

Segundo ele, o acordo extrajudicial feito com a parte da empresária será mantido suspenso até que a decisão judicial tenha transitado em julgado. Moraes afirma que a decisão do Governo do Estado de apresentar a ação foi para garantir a segurança jurídica, a partir do questionamento feito pela comunidade.

Até então, o Estado do Ceará vinha conduzindo o caso apenas administrativamente. A PGE havia formado um grupo de trabalho para periciar registros que ajudassem a elucidar a questão. Com a análise da cadeia dominial da fazenda, busca de documentos cartorários anteriores, plantas topográficas e delimitações fundiárias da região. 

O levantamento foi feito por técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace). Eles chegaram a retroagir a matrículas que datam de 1926, inclusive com manuseio de papéis muito antigos, desgastados, e material microfilmado que estava em acervo mantido no Distrito Federal. A Superintendência de Patrimônio da União (SPU) e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) foram cientificadas do trabalho. 

Em maio de 2024, o Estado chegou a firmar acordo com a empresária, que aceitou receber o equivalente a 3,47 hectares em 19 lotes de áreas remanescentes não ocupadas da vila. O acerto só foi descoberto pela comunidade em meados de outubro e desde então deu-se o imbróglio. A fazenda Junco I foi comprada em 1982 pelo empresário José Maria de Morais Machado, ex-marido de Iracema. O casal se separou em 1995 e ela recebeu o imóvel na partilha de bens. Zé Maria morreu em 2008. A ação apresentada está registrada na Vara Única da Comarca de Jijoca de Jericoacoara. 

Respostas sobre o caso

O POVO fez contatos com a defesa da empresária Iracema Correia São Tiago e aguarda retorno para atualizar a matéria. Também procurou o cartório Liberty Morais, por telefone, e enviou mensagem por email para manifestação sobre o que diz a ação interposta pela PGE. Na ligação, no início da tarde desta sexta, 29, uma funcionária, de nome Marcélia, disse que a resposta só poderia ser dada pela tabeliã titular, Rita Silvana Melo, ou pelo jurídico do cartório. Ela não quis repassar contato telefônico.

Em nota, o Conselho Comunitário da Vila de Jericoacoara, que representa os moradores, destacou que a ação apresentada pelo Estado foi uma medida tomada após a cobrança feita pela entidade e significa um passo importante na defesa do território, somado à suspensão do acordo até a definição judicial. O Conselho Comunitário passou a atuar e a se manifestar em conjunto com o conselho local de empresários, que reúne principalmente donos de hospedagens e comerciantes. 

"Não se pode admitir que áreas de posse sejam tratadas como propriedade e transferidas de forma irregular. É fundamental que a verdade venha à tona e que Jericoacoara seja protegida de interesses privados que não respeitam sua história e coletividade”, afirma Lucimar Marques, presidente do Conselho Comunitário.

Terras de Jeri: linha do tempo do imbróglio

> 1981 - O empresário José Maria Morais Machado, então marido da empresária Iracema Correia São Tiago, adquire três imóveis na região. Ele forma a fazenda Junco I, para plantio de coco e caju. Entre moradores de Jeri é conhecida como "Firma Machado".

> 1982 - Aquisição das terras da firma Machado, regularizada no cartório de Acaraú em janeiro de 1983.

> Entre 1995 e 2000 - O governo estadual, através do Idace, promove a regularização fundiária na região. O processo foi acompanhado por comitê local de moradores. Houve desde titulação de ocupantes a arrecadação sumária de terras devolutas pelo Estado.

> Julho 2023 - Advogados da empresária Iracema apresentam ao Idace a escritura da fazenda Junco I, reivindicando terrenos em Jeri pela sobreposição de área - cerca de 80% coincidentes. O documento não havia sido mostrado no período de regularização fundiária.

> Maio 2024 - Após análise, o Estado e pareceres de órgãos fundiários e ambientais reconhecem a validade dos documentos de Iracema. É fechado um acordo com a empresária, mediado pela PGE. Em vez de 18 ha, seriam transferidos 3,47 ha em 19 lotes, somente de áreas não ocupadas por construções nem as de interesse público.

> Outubro 2024 - A notícia do acordo é descoberta pela comunidade e vira polêmica. Moradores e empresários passam a temer a perda de seus imóveis. Poucos dias depois, o MPCE recomenda a suspensão do acordo para análise mais minuciosa dos registros cartorários. A PGE segue o pedido e suspende o acordo por tempo indeterminado para essa apuração.

> Novembro 2024 - Conselho Comunitário de Jeri apresenta novo laudo técnico, feito por engenheiro cartógrafo, questionando tamanho de terras da empresária

> Dezembro 2024 - Cartório de Acaraú é visitado na investigação conduzida pela PGE, junto com órgãos fundiários, ambientais e representantes da empresária e dos moradores e donos de hotéis de Jeri. É identificada uma escritura de 1941, associada à cadeia dominial dos terrenos onde está a fazenda Junco I. Papéis mais antigos não puderam ser manuseados.

> Janeiro 2025 - Técnicos do Incra vão ao acervo do órgão, em Brasília, analisar registros cartorários microfilmados da comarca de Acaraú.

> Junho 2025 - O caso segue indefinido e as partes cogitam a judicialização.

> Agosto 2025 - Após a descoberta de um erro cartorário que averbou uma área de posse ao título da propriedade da fazenda Junco I, o Estado optou por desistir da condução administrativa do caso. A PGE protocolou ação, no último dia 27, para que a Justiça decida o litígio e avalie se a matrícula da fazenda é válida. O acordo extrajudicial com a empresária seguirá suspenso até a decisão transitar em julgado.

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