Ocupar espaços em condições de igualdade, em 2016, ainda é desafio
diário para milhares de mulheres no Brasil. Na política institucional,
então, a disseminação do já tão falado "empoderamento feminino" chega a
passos lentos. Na primeira eleição após o impeachment da primeira mulher
presidente da República, a representação feminina, que já era pequena,
caiu. Para cientistas políticas, o abismo numérico das urnas é reflexo
de uma sociedade ainda arraigada ao patriarcalismo. Mudar o cenário,
para elas, exige mais do que mero cumprimento da lei eleitoral.
Em 2016, apenas 11,44% dos 5.568 municípios brasileiros elegeram
mulheres para a prefeitura. No Ceará, apenas 25 dos 184 gestores eleitos
neste ano são mulheres, estatística pouco maior que a proporção
nacional: 13,58% do total. No último pleito municipal, em 2012, 33
prefeitas haviam sido eleitas em território cearense.
Para a cientista política Helcimara Telles, professora do Departamento
de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a
perda de representação feminina na política após o recém-concluído
processo eleitoral "corresponde ao momento" político no País. "Nem tudo
se explica por causa disso", pondera ela, mas acredita que uma narrativa
misógina e machista em torno do processo de impeachment da
ex-presidente Dilma Rousseff resultou em uma visão "bastante negativa"
sobre a atuação política da mulher. "Toda a narrativa foi feita muito em
cima da figura da mulher, da criação de uma imagem bastante negativa da
competência de uma mulher de gerenciar um país", associa.
Ao apontar "violência simbólica" contra a ex-presidente, a cientista
política cita, por exemplo, postagens de cunho pejorativo nas redes
sociais que faziam referência à imagem de Dilma. "Inclusive apareceu um
adesivo dela com as pernas abertas", lembra. "Não estou julgando
competência ou incompetência, se ela praticou crime (de responsabilidade
fiscal) ou não, mas estou dizendo que, mesmo que ela fosse criminosa,
isso não poderia se confundir com o gênero feminino", acrescenta. Tal
fato, segundo Helcimara Telles, torna evidente a desigualdade de
tratamento entre mulheres e homens no espaço político institucional.
Preconceito
Dilma, porém, ainda chegou ao maior cargo da República, ao contrário de
muitas mulheres candidatas que terminaram o último pleito longe da
eleição. Na avaliação da cientista política Mônica Martins, professora
do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece), é
o preconceito que ainda dificulta as vitórias de mulheres que disputam
cargos eletivos.
"Acredito que o preconceito ainda existe em relação à participação da
mulher na política, seja na política eleitoral, com representação como
prefeita, vereadora ou presidente, ou na participação da política de
base", expõe. "A nossa sociedade, infelizmente, ainda é muito
retrógrada, muito patriarcalista, muito desigual, portanto a
representação na política é uma expressão do que somos como sociedade".
Opinião semelhante tem a cientista política Andrea Steiner, professora
do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Segundo ela, o espaço ocupado pela mulher é restrito,
dentre outros motivos, pelo não estímulo à vida política. Um reflexo da
cultura machista é que, conforme menciona, é comum que mulheres trilhem
carreira política apenas para que suas famílias perpetuem-se no poder.
Andrea destaca, ainda, que a desproporcionalidade entre homens e
mulheres na política não é apenas realidade brasileira. Nos EUA, por
exemplo, esta é a primeira vez que uma mulher disputa a presidência. "A
situação mundial, em geral, é ruim. Alguns países estão mais à frente,
você tem casos que se sobressaem na Europa, mas o Brasil não está tão
diferente dos demais. Essa história de que o campo político em geral é
uma arena masculina é fato, tanto é que, às vezes, mulheres que assumem o
poder dizem que assumem características masculinas para sobreviver
nesse meio".
A legislação brasileira tenta garantir participação feminina no
processo eleitoral. Desde 1997, a Lei nº 9.504 indica que "cada partido
ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para
candidaturas de cada sexo" na disputa proporcional. O mero cumprimento
da "cota de gênero", contudo, ainda esbarra em desvios dos próprios
partidos, que, em alguns casos, atraem candidaturas femininas para
fechar a cota, mas não lhes dão condições de terem campanha competitiva.
Está aí, segundo a cientista política da UFMG, outra barreira que tem
influência no pequeno número de mulheres eleitas em 2016. Ela diz que,
além de terem menos tempo disponível para dedicarem-se à carreira
política, uma vez que também desempenham papéis de profissional e mãe,
as mulheres, mesmo quando são competentes líderes, acabam
invisibilizadas nas estruturas partidárias. "Há resistência à militância
política delas, o que faz com que poucas adentrem as estruturas
partidárias, e dentro das estruturas você percebe que existem poucas
mulheres em cargos diretivos. Muitas são militantes de base, quadros
intermediários", observa.
No atual contexto, então, Mônica Martins, da Uece, defende uma reforma
que vá além da "cota de gênero" e dê mais espaço a movimentos e
coletivos de mulheres, que embora existam em quase todos os lugares, não
costumam ser valorizados. "Aí os partidos vão procurar a tia do
vereador, a mulher do prefeito. Ou seja, vão indicar para ocupar as
vagas dos 30% a tia, a mulher, a avó, a mãe. Não vão em busca daquele
grupo organizado de mulheres que existe em todos os lugares. Não basta
ter um percentual estipulado. É preciso que o processo de inserção da
mulher parta de grupos organizados".
Andrea Steiner, por sua vez, acredita que condições de igualdade nas
disputas não são suficientes para garantir a participação feminina.
Afinal, ao chegarem a espaços de poder ocupados majoritariamente por
homens, os desafios se replicam. "A reforma ajuda, mas tem que ser em
vários âmbitos. Desde a educação em casa até como a mulher é retratada
na mídia", diz. As lutas, para Mônica Martins, de fato não acabam aí.
"Acho que a luta não é só conquistar o cargo de prefeita ou vereadora,
mas é se manter nele. O grande desafio é ocupar, resistir e abrir espaço
para outras mulheres".
Diário do Nordeste