Enquanto o papa Francisco parece ter negado a existência de um mundo no
qual sofrem os pecadores, o progresso tecnológico caminha para provar o
contrário
Pois o papa Francisco negou
a existência de um inferno. Ou ao menos assim dizem por aí –
a Igreja nega a negação de Chico. De qualquer forma, teria
dito Sua Santidade: “O inferno não existe, o desaparecimento das almas dos
pecadores existe”. Alguns poderiam até avaliar que isso seria prova de
progresso do catolicismo. A afirmação polêmica deixaria papa Francisco mais
próximo da ciência? Só se for da ciência de umas décadas (quiçá,
séculos) atrás.
Enquanto o pontífice extingue a
ideia do martírio eterno, gênios contemporâneos como Elon Musk, Stephen
Hawking (do qual fiz o
obituário em VEJA) e Nick Bostrom (e muitos
outros no encalço desses) seguiram o caminho contrário. Para eles, não só o
reino de Lúcifer poderia ter forma, assim como o paraíso, ou uma simulação de
videogame no estilo The Sims. “É de apenas uma em um bilhão a chance de
estarmos vivendo numa realidade de fato”, já disse o empreendedor Musk.
A ideia de que experimentaríamos
em nossas rotinas uma simulação, não uma “realidade de fato”, remonta a quando
o ser humano começou a pensar. Ao se ater aos registros históricos, por
exemplo, filósofos da Grécia Antiga como Aristóteles e Platão (com sua manjada
Alegoria da Caverna), imaginavam que podíamos estar num universo ilusório,
reflexo do que seria o real.
Na China do século IV a.C, o
filósofo Zhuangzi se perguntava se ele seria, na verdade, uma borboleta
sonhando que era um pensador chinês – ou seria o vice-versa, mesmo? A ideia de
que povoaríamos um sonho eterno afligiu ainda outros dos grandes nomes da
humanidade, em especial René Descartes nos longínquos anos de 1640, quando
expressou sua aflição na obra-prima Meditationes
de Prima Philosophia.
No entanto, até recentemente o
assunto, pode-se notar, era tido apenas como devaneio de filósofos ou crentes.
Físicos, matemáticos, químicos, biólogos, riam do assunto. Tudo mudou com a
chegada do computador, da internet, da inteligência artificial e, finalmente,
das realidades virtuais.
A ciência une duas
características demasiadamente humanas: a imaginação e a racionalidade. É
preciso primeiro imaginar o provável para depois prová-lo. Einstein, por exemplo, antes de formular sua Teoria da Relatividade
e determinar a velocidade da luz como a máxima possível de ser alcançada,
vislumbrava como seria cavalgar um raio de luz universo afora. Foi dessa
semente que surgiram suas teses deslumbrantes.
Por isso que, ao longo da
história, muitas teorias nasceram como ficção científica, evoluíram para a
academia e, depois, ganharam hipóteses comprováveis empiricamente. Na Grécia
Antiga, quando era moda escrever novelas sobre como deuses (vários) criaram
tudo que há, os pensadores refletiam sobre “Mas quais seriam os tijolos da
realidade?”. Aí está o embrião das pesquisas que, séculos depois, levaram à
descoberta dos átomos. Também surgiram nas novelas e contos as ideias que
culminaram na exploração espacial, na energia nuclear, na clonagem, em tantos
outros avanços. Como a criação de realidades
virtuais (VR, na sigla em
inglês).
Hoje em dia, é moda ficcional
tratar de VR. Uma onda que vem desde o auge de Philip K Dick. Todavia, ganhou
força para valer depois que nós conseguimos construir essas VRs, tendo
computadores como martelos e a internet como ambiente. Aí a ficção se encheu,
no bom sentido, com o tema. Dessa inspiração surgiram filmes como O
Vingador do Futuro, de 1990, e (o mais famoso desses) Matrix,
de 1999.
Ou episódios de Black Mirror, ou
mesmo da animação sensação Rick and Morty – há um no qual o
cientista-maluco protagonista cria uma VR paralela apenas para gerar energia
para abastecer a bateria de seu carro (e isso faz total sentido científico).
Em paralelo à imaginação sempre
frutífera de escritores e cineastas, a tecnologia de VR avançou a passos
largos. Explicou Musk: “Há 40 anos tínhamos o jogo Pong, com dois retângulos e
um ponto. Agora, há games fotorrealistas, com simulações em 3D e milhões de
pessoas jogando simultaneamente. Em breve teremos uma VR indistinguível da
realidade”.
É nesse ponto que a coisa fica
bem interessante – e um dia poderá levar à prova de que existe inferno, assim
como um paraíso (mesmo que virtuais). Uma série de cientistas começou a
arquitetar a seguinte lógica: se avançamos para a criação de realidades cada
vez mais perfeitas, um dia devemos moldar uma na qual quem estiver nela achará
que vive na realidade mais real de todas, não numa ilusão. E o raciocínio vai
além. Se agora desenvolvemos inteligências artificiais capazes de guiar
personagens num videogame, pode ser que um dia consigamos atingir o ponto
máximo dessa programação. Isso se dará quando pudermos simular, em zeros e uns,
a consciência humana. A partir desse momento, tal inteligência artificial não
se diferenciará da orgânica. E se esse software estiver imerso em uma simulação
criada por um desenvolvedor desse futuro não tão hipotético? O tal personagem
achará que é humano, que vive num mundo real, e passará a fazer teorias para
explicar o que vê ao redor.
Acompanhou? Nick Bostrom, um dos
mais célebres defensores desse argumento, publicou em 2003 um artigo científico
instigante, com o título de “Você está vivendo em uma simulação de
computador?”, que ilustra bem a nova teoria. Algumas de suas palavras:
Muitas obras de ficção
científica, assim como previsões de sérios tecnólogos e futurologistas,
predizem que um enorme poder computacional estará disponível no futuro.
Suponhamos que essas predições estão corretas. Uma coisa que gerações futuras
poderão fazer com os superpoderosos computadores será criar simulações de como
seus ancestrais viviam (…) Suponha que essas pessoas simuladas são conscientes
(…) Então, será o caso de que a grande maioria das mentes como a nossa não
pertencem à raça original, mas à de pessoas simuladas (…) E aí é possível
argumentar que, se esse é o caso, a probabilidade é maior de estarmos entre
essas mentes simuladas em vez de entre nossos originais biológicos. Se não
cogitarmos que atualmente vivemos em uma simulação de computador, não somos intitulados
a acreditar que nossos descendentes poderão construir essas simulações.”
A questão é que a humanidade
parece caminhar para a criação de tecnologias capazes, sim, de moldar essas
simulações. Não só isso. Há cada vez mais teses de como poderíamos até provar
que vivemos numa VR. Uma das evidências seria justamente o fato de o mundo ser
explicável pela matemática. Se é assim, talvez haja um programador e possamos
chegar a ele. Outra maneira seria hackear nosso próprio universo ilusório,
manipulando uns e zeros para assim conversar com nosso Criador (quem sabe, até
invadir o computador Dele, para ver o que Ele anda fazendo nas horas vagas).
O que o inferno do papa tem a ver com tudo isso?
É bem simples. Se a teoria da realidade simulada um dia se provar
viável, quer dizer que vivemos num videogame. Usualmente, humanos criam jogos
com narrativas que mesclam ideias reais com as imaginárias. Se estamos em meio
a um desses games, não conseguimos sacar ao certo o que é originalmente real, e
o que não é. Logo, o programador desse mundo, seja ele orgânico ou mecânico,
poderia, sim, ter feito um paraíso e um inferno, a partir de seus avançados
códigos de computador.
A conclusão ainda responderia a
outra questão persistente da humanidade: se há um Criador, por que ele permite
crueldades, brutalidades, injustiças, nesse mundo? Ocorre que um programador só
faria um videogame se o mesmo lhe parecesse interessante. Um universo de
bondades não seria, convenhamos, interessante para compor a história de um
game. Você jogaria uma VR guiada por uma história sem conflitos, sem desvios
morais, sem maldades a serem combatidas? E sem purgatório, inferno e paraíso?
Parece uma teoria das mais
malucas, não? Contudo, vale lembrar que já foram tidas como zuretas ideias como
a de que a Terra não estaria no centro do cosmo; ou de que o planeta não seria
plano; ou de que existiriam partículas; ou genes; ou leis da física; ou robôs;
ou realidades virtuais na qual entramos por meio de uns óculos de imersão.
Revista Veja