A tragédia das histórias entrelaçadas à Chacina das Cajazeiras não cabe
em uma única reportagem ou coluna. Cada uma delas, contudo, merece ser
contada. Algumas, em razão da gravidade dos fatos.
Outras, sobretudo, por justiça à memória das vítimas. Por respeito às
suas famílias. Por tudo o que não foi dito, ensejando suspeições
maliciosas.
No cenário de uma Fortaleza que se acostumou a não se apavorar com as
mortes que ocorrem longe da Aldeota e suas adjacências, reputações são
maculadas da noite para o dia, sob o argumento do possível “envolvimento
com o crime”. Regra geral, a suspeição serve para justificar e ignorar a
grande maioria dos assassinatos ocorridos no Estado. É a naturalização
da violência nas regiões mais vulneráveis.
Foi o que aconteceu com João Eudes Rebouças Filho (foto), de 38 anos.
Então membro do Conselho Regional dos Despachantes Documentalistas do
Ceará (CRDDCE), Eudes foi vítima de homicídio.
Crime planejado e executado, segundo a Polícia Civil, pelos mesmos
criminosos que protagonizaram o massacre do dia 27 de janeiro, que
deixou 14 mortos e 18 feridos.
Conforme inquérito da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP),
quando o grupo matou o despachante do Departamento Estadual de Trânsito
(Detran-CE), sequer tinham se passado 24 horas desde a chacina. Ainda em
liberdade, e sem o constrangimento da barbárie protagonizada na noite
anterior, os criminosos reincidiram na ação impiedosa. Eudes, porém, foi
executado por engano.
Sentenciado à morte pelo WhatsApp, o despachante foi confundido com um
suposto desafeto da facção Guardiões do Estado (GDE), identificado no
inquérito apenas como “Jean”. Na ocasião do crime, Eudes assistia a um
jogo de futebol, em um barzinho, no bairro Jardim União. Foi quando um
olheiro da facção comunicou ao grupo que “Jean” estava “dando bobeira no
bar”. Eudes foi surpreendido, baleado e morto.
“Era uma pessoa tranquila, calma. Um amigo brincalhão e muito família.
Saía sempre acompanhado da esposa, dos filhos, pedalava, tinha uma vida
normal. Não havia nada que desabonasse a conduta dele. Era membro do
conselho desde a sua fundação. Tinha uma conduta totalmente ilibada”,
resumiu um dos membros da CRDDCE, que pediu para não ser identificado,
em razão das circunstâncias da morte.
Os acertos para a execução de Eudes foram extraídos do celular de Ruan
Dantas da Silva, 19, preso e indiciado como um dos autores materiais da
chacina. Segundo o inquérito, Ruan seria membro de um subgrupo da GDE,
identificado como “Os Quebra Coco – OQC”, cuja principal atribuição
seria executar membros de facções rivais.
Foram várias as mensagens trocadas entre Ruan e pelo menos sete
comparsas diferentes. Nelas, o grupo esquematiza a imediata execução de
Eudes, tratado como Jean. No primeiro diálogo citado no inquérito, Ruan
conversa com Francisco Kelson Ferreira do Nascimento, conhecido como
Nove Milímetros ou Susto. “Ei, se inteira: o Jean, o Jean pilantra, né?
Tá assistindo ao jogo do Fortaleza ali, de bobeira. Bora, bora matar,
botar a balaclava e bora, bora matar esse bicho, bora, bora, cuida!”,
convoca Ruan. Kelson, após confirmar a “camisa” do alvo, numa referência
à facção rival, autoriza o ataque. “Vai! De moto, só na miúda”. Minutos
depois, o crime foi concretizado. “Só na cara!”, comemorou Ruan.
Contudo, em seguida, os criminosos perceberam que haviam matado a pessoa
errada. Antônio Lucas Alves Bezerra, o Cileudo, apontado com padrinho
de facção de Ruan, advertiu o afilhado e disse conhecer a vítima. “O
nome dele é seu Eudes. Eu conheço ele, até demais. É torcedor do Ceará,
gente boa, ele. Num tinha envolvimento com nada, só com as coisas dele,
com serviços dele, alguma coisa, cidadão tranquilo, lá do Henrique
Jorge. É o seu Eudes!”.
Ruan também foi repreendido por Zaqueu Oliveira da Silva, o Pai ou H2O,
pela execução errada e pela quantidade de conversas pelo WhatsApp. “Ei,
macho. Ei, PH, vocês falam demais, Betim. Tem um áudio de vocês fazendo
aí, mah… Falando. Ei, macho, ei, Beto, porque você não bota a língua de
vocês dentro da boca. Ei, mah, quando vai fazer uma coisa, cara… Tu acha
que é brincadeira aquilo que nós fizemos, cara? (sic)”, diz Zaqueu, em
referência à chacina.
“Mas esse áudio aí, né, foi no grupo da gente, viu, padrinho? Foi no
grupo da tropa”, justifica Ruan. “Não, cara, porque vocês não têm jeito
não, cara. Num é pra falar não em nenhum canto, homi… Já basta aquela
mancada, né, mah? O cara, mataram o cara aí (sic)”, completa Zaqueu,
sobre a morte de Eudes.
O inquérito contém ainda conversas extraídas de cinco grupos de WhatsApp
dos quais Ruan participava e foi excluído logo após ter o celular
apreendido, em 30 de janeiro. Ruan, contudo, só foi capturado no dia 18
de abril, em Beberibe, durante abordagem da Polícia Militar.
Sobre Eudes, porém, nada havia sido dito. A morte do despachante não foi
lamentada sequer nas redes sociais, muito por conta da forma violenta
como o crime foi praticado. Que fique registrado, portanto: Eudes era
inocente e foi morto de maneira covarde. Que a justiça seja levada aos
seus algozes. E que a família possa enfrentar o luto de cabeça erguida.
O POVO