O Estado do Ceará já foi condenado a pagar neste ano pelo menos R$ 655
mil e sete pensões a familiares de 14 detentos mortos em unidades
prisionais cearenses. Com exceção de uma, as decisões envolvem casos de
anos anteriores. A espera pela Justiça leva, em média, 3 anos e 10 meses
para os filhos, pais, irmãos e esposas das vítimas.
Ao menos nos casos julgados neste ano, as mortes foram provocadas por
conflito entre detentos. As execuções carregam sempre traços de
crueldade: envenenamentos, asfixias, espancamentos, degolações e,
principalmente, traumatismos cranianos, apontam os laudos cadavéricos.
“Toda morte é dolorosa, mas a dele foi muito feia, até hoje não consigo ler o laudo cadavérico. Considerando estar em uma unidade como aquela (no complexo prisional de Itaitinga), presume-se a crueldade e os meios utilizados, isso piora nossa dor”, contou, sob condição de anonimato, a mãe de um jovem morto em 2016.
Segundo ela, o filho estava condenado à morte por internos da unidade.
Ainda assim, foi transferido para o local, onde ocorreu a execução menos
de 24 horas após a chegada dele. “Não recebi nada, nenhum
acompanhamento ou assistência”, lamentou.
Precisando auxiliar na criação do neto, a mulher buscou advogado e apresentou pedido de indenização. O caso já se estende há dois anos e não há previsão de ter alguma definição. “O advogado já falou desde o início que ia demorar. Achamos que deveria ser mais ágil, ao menos priorizar, já que ele deixou um filho que dependia do pai até então”.
A morosidade na garantia de direitos
É justamente essa demora que afasta familiares das vítimas na busca por reparação judicial, segundo o defensor público Igor Barreto de Menezes Pereira. Ele é autor de ação civil pública contra o Estado pelas mortes de dez internos da Cadeia Pública de Itapajé, a 130 km de Fortaleza, em 29 de janeiro. Paralelamente, todas as famílias dos mortos à época também impetraram processos indenizatórios pela matança.
Além das condenações pela Justiça brasileira, no último mês de fevereiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também culpou o Estado pela chacina na cadeia no início do ano. Conforme dados divulgados pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), desde 2013, 205 pessoas morreram em unidades prisionais cearenses. Até meados de novembro deste ano, foram 43 casos.
“Quase todas as pessoas sabem que têm o direito, mas poucas recorrem. (Elas) acham que não vai dar certo, que vai demorar, não têm recursos. A Defensoria é gratuita, mas, para quem paga advogado, tome dinheiro e tempo”, afirmou Pereira.
Ele ainda criticou medidas de apelação adotadas pelo Estado em tais
processos. “Os recursos que o Estado do Ceará promove são lesivos,
moralmente inaceitáveis, as famílias ficam anos esperando a reparação
por causa disso”, disse Pereira. Em todos os casos julgados neste ano o
Estado usou o mesmo argumento de defesa: não foi o agente causador da
morte, portanto, não pode responder por atos dos internos.
Entendimento pacífico
Tanto o defensor público quanto o promotor de Justiça Amisterdan de Lima Ximenes, titular a 11ª Promotoria da Fazenda Pública, onde a maioria dos processos são julgados, disseram ter entendimento pacífico sobre a questão.
O argumento deles levam em conta processos julgados pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em caso
de repercussão geral (RE 841526) apreciado pela mais alta corte do
País, os ministros decidiram que a morte de preso “gera responsabilidade
civil do Estado quando houver inobservância do seu dever específico de
proteção”.
De acordo com Ximenes, o que é cabível de discussão é o valor a ser pago
de indenização, levando em conta a idade da vítima, a quantidade de
filhos e a forma como a execução ocorreu, por exemplo. Já o pagamento de
pensões costuma ocorrer até o ano em que a vítima completaria cerca de
70 anos (expectativa de vida dos brasileiros), em valores que variam de
30% a 60% do salário mínimo.
Quando se mata na prisão
Para o procurador de Justiça, há três circunstâncias em que ocorrem mortes de preso. Na primeira, algum agente público é o executor do crime. Neste caso, segundo ele, não restam dúvidas de que o Estado é o responsável.
Para ele, as divergências são cabíveis em dois casos: suicídio e
execuções entre internos. “No suicídio não há nexo de causalidade que
ligue o Estado. O outro caso é controverso porque não é pela ação do
agente, mas pela omissão, se poderia ter feito algo que não fez”,
disse.
O defensor público diverge do promotor de Justiça e considera o ente
público culpado nas duas situação. “O Estado diz que não pode dar conta
de uma pessoa a ponto de prevenir suicídio, mas é uma mentira, é
evidente que pode prevenir, tem vários mecanismos. O suicídio nunca é na
primeira crise”, pondera.
Ele argumenta ainda que a acusação contra o Estado é quanto à falha na
prestação de um serviço. “Não vamos em busca da intenção, do dolo, mas
do fim. Não é que o Estado deseje a morte dessas pessoas, mas é a
prestação de um serviço deficiente”, explicou.
Entre a condenação e o pagamento
Ainda que com decisão favorável, as famílias não recebem de imediato a compensação financeira e precisam enfrentar mais uma longa espera, conforme explica o defensor público. Ele explica que o pagamento de valores mais altos, como as indenizações, são realizados por precatório.
Após o trânsito em julgado, o advogado solicita ao juiz a execução do
pagamento. O magistrado encaminha a requisição ao presidente do Tribunal
de Justiça, que autoriza a expedição do precatório.
As solicitações realizadas até 1º de julho de um ano são convertidas em precatórios e incluídas na proposta orçamentária do ano seguinte. Já aquelas apresentadas após 1º de julho são inseridas na proposta orçamentária do ano subsequente. “Entra em uma fila miserável depois de ter passado dez anos esperando com uma demanda justa, segura, impossível de perder. O Estado já deveria ter um fundo indenizatório para reparação das vidas acometidas por violências do próprio Estado”, disse Pereira.
Serviço
Conforme o defensor público, para reivindicar indenização pela morte de
algum interno, os familiares da vítima precisam levar à Defensoria
Pública do Estado documentos que provem a ligação familiar, além de
comprovante de endereço, carteira de identidade e CPF. Em caso de
pessoas que vivem em união estável, o processo é mais demorado.
Inicialmente, é necessário entrar com ação pedindo reconhecimento da
união.
Com todos os documentos em mãos, a família solicita à Perícia Forense do
Estado do Ceará (Pefoce) a segunda via do exame cadavérico e ao
cartório as certidões de nascimento e óbito. “Entramos com a petição
inicial de reparação de dano moral e material, que vai ser distribuído
para alguma das varas da Fazenda Pública. A Procuradoria (Geral do
Estado) faz a representação e os recursos infinitos que sabem manejar
muito bem”, disse.
Sem respostas
O POVO Online procurou a Secretaria da Justiça e Cidadania do Ceará
(Sejus) e a Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE) na última
sexta-feira, 16. A reportagem questionou sobre a reincidências das
mortes e o que se tem feito para prevenir as execuções e melhorar as
condições do sistema prisional, questionou ainda sobre a assistência às
famílias das vítimas, o processo de pagamento das indenizações e o
entendimento que o Estado tem para recorrer alegando não ter
responsabilidade sobre as mortes. Contudo, nenhum dos questionamentos
foi respondido até esta segunda-feira, 26.
O POVO Online