A saúde pública do Ceará vive, literalmente, uma sangria que não estanca: pelos serviços prestados de forma insuficiente, sobretudo em relação à falta de leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), o Estado gasta até R$ 10 milhões por mês com processos judiciais movidos por pacientes contra a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa). O montante fora do orçamento previsto, assim, deixa de ser aplicado na ampliação da assistência, gerando uma sobrecarga em unidades de atendimento primário e um círculo vicioso de deficiências no sistema.
A busca por vagas em leitos de UTI é uma das principais demandas
atendidas pelo Núcleo de Defesa da Saúde (Nudesa) da Defensoria Pública
Geral do Estado, que já contabilizou quase 1.200 atendimentos para
abertura de processos judiciais somente neste ano, até fevereiro,
conforme revelou reportagem publicada no Diário do Nordeste no último
sábado (30).
Em nota, a Sesa conta 1.201 transferências para leitos de UTI por meio
de liminar viabilizadas omente em 2018. Nos meses de janeiro e fevereiro
de 2019, houve 213 transferências desse tipo. O tempo de cumprimento da
decisão depende de cada situação e é influenciada pela gravidade do
paciente.
De acordo com a Sesa, há atualmente 1.062 leitos de Unidade de
Tratamento Intensivo (UTI) no Ceará. Esse número representa, conforme a
pasta, um crescimento de 9,6% em relação à quantidade que havia em 2014.
Os leitos de UTI nas unidades da rede própria estadual, principalmente
com a abertura dos hospitais regionais do Cariri, Norte e Sertão
Central, cresceram 28,27% em igual período. A demanda, como o secretário
da Saúde do Estado, Dr. Cabeto, reconhece, “é maior do que a nossa
capacidade de atendimento”.
“Nossa intenção é colocar quem realmente precisa, e essa demanda tende a
crescer, devido ao envelhecimento da população. Hoje, o profissional da
saúde está num dilema diário: escolher quem tem acesso a esses leitos
ou não. É possível transferir para outros municípios, mas não é o ideal.
Só que, diante da falta, somos obrigados a fazer isso”, declara
Cabeto.
‘Bola de neve’
Quem entra na Justiça para garantir a cura ou sobrevida de familiares
sabe da urgência, como Mariana (nome fictício para preservar
identificação), que viu o pai morrer à espera de uma vaga. Ele estava
internado em um leito de UTI do Estado após complexas cirurgias para
reduzir os efeitos do câncer de próstata. A filha deduz que ele foi
retirado da vaga por ter as chances de sobrevida avaliadas como baixas.
Os reais critérios, conforme ela, nunca foram esclarecidos pela unidade
de saúde.
“Meu pai já estava num estágio avançado, tinha 69 anos, então tiraram da
UTI para colocar outra pessoa, e ele foi pra enfermaria comum. Foi
quando acionei o Judiciário, porque a UTI era onde ele deveria estar.
Não lembro quantos dias ficamos esperando, mas, no fim, não deu tempo.
Mesmo com a decisão judicial na mão, não conseguimos, e ele faleceu. A
liminar foi um grito de socorro no vácuo”.
Um dos pontos em comum entre o pai de Mariana e o de Claudiana, que
também morreu à espera de um leito (história foi contada na nossa
reportagem de sábado), é que ambos precisaram recorrer às Unidades de
Pronto Atendimento (UPA) de Fortaleza para obter socorro – o que,
segundo avalia a professora do Departamento de Saúde Comunitária da
Universidade Federal do Ceará (UFC), Magda de Almeida, gera uma “bola de
neve” no sistema.
“As UTIs deveriam ser pontos de apoio de curta duração, mas acabam
ficando com pacientes de forma prolongada, porque não existe retaguarda
para desospitalizá-lo. Se não tem leito de UTI, quem precisa deles
permanece nas UPAs – e quem está na UPA, por sua vez, também não terá
acesso”, equaciona.
Atualmente, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS),
Fortaleza conta com 12 UPAs (metade de gestão estadual) distribuídas em
todas as Regionais, e cada uma dispõe de 15 leitos gerais. Questionada
sobre quais casos levam à internação nas unidades de urgência e
emergência, qual o tempo médio de permanência dos pacientes nesses
leitos e o gasto mensal com os enfermos que precisam ficar nos locais
após atendimento, a Pasta não respondeu.
A reportagem também questionou à SMS sobre como se dá a comunicação com a
rede de saúde estadual quando é necessária a transferência de pacientes
para leitos de UTI ou de maior complexidade, e quais os impactos da
indisponibilidade ou insuficiência dessas leitos para o sistema
municipal de saúde. A Pasta, porém, limitou-se a informar sobre a
“equipe multidisciplinar” que atende nas unidades, a quantidade de
atendimentos diários (350) e o valor mensal gasto em cada UPA: R$ 1,5
milhão.
Ampliação
A dificuldade na disponibilidade de internação de alta complexidade,
conforme analisa Magda de Almeida, é a falta de investimentos não só em
ampliação, mas na manutenção dos leitos. “Abrir hospital com leitos de
UTI é fácil, mas manter é complicado. É necessário reorganizar a rede
para darmos conta. A Organização Mundial da Saúde recomenda que haja de
três a cinco leitos por mil habitantes. No Ceará, temos bem menos”,
estima. De acordo com os dados mais atuais do Datasus sobre o assunto,
em 2012 o Ceará tinha 1,73 leitos hospitalares do SUS por mil
habitantes.
A solução para desafogar a estrutura de saúde pública, aponta Magda,
deve iniciar pela base: reforçando as políticas preventivas de saúde da
família e criando uma boa cultura de assistência. “Não só para cuidados
paliativos, mas para aqueles pacientes que ficaram internados e
precisaram sair. Isso diminuiria o tempo de permanência nos leitos dos
hospitais”.
A Secretaria de Saúde do Estado também reforça que tem ampliado os
gastos em saúde ano a ano e garante o investimento mais do que o mínimo
constitucional exigido (12% do total da receita de impostos e
transferências) desde 2012. Em 2017, conforme a pasta, esse percentual
chegou a 14,65%. Além disso, na rede própria do Governo do Ceará, de
2014 a 2018, foram registrados, conforme o Estado, o crescimento de
35,72% de cirurgias realizadas, 24,49% de atendimentos ambulatoriais e e
14,39% de atendimentos na emergência 14,39%. As internações cresceram
7,51%.
O titular da Sesa, Dr. Cabeto, acrescenta que a diminuição do período
contribui também para reduzir “as filas cirúrgicas e de emergência”,
repercutindo em todo o cenário – que, como ele mesmo define, é de caos.
“Não dá para negar o quadro caótico da saúde que nós vivemos, nem que as
demandas sociais são enormes. Temos grandes desafios a romper, mas acho
que é possível”, defende.
Diário do Nordeste