Apesar de descumprirem a
Constituição, policiais militares de várias partes do país acreditam que, nesta
nova onda de mobilizações, serão anistiados, como ocorreu em ocasiões
anteriores. No momento, seis estados enfrentam reivindicações da categoria
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Policiais encapuzados cruzaram os
braços em Fortaleza: movimento acendeu alerta sobre a dificuldade do governo de
enfrentar o movimento. (foto: João Dijorge/Photopress/Estadão Conteúdo)
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O motim de policiais militares no
Ceará, que fez explodirem os índices de criminalidade e desafia as autoridades
locais, acendeu o alerta sobre a dificuldade de enfrentamento de um protesto
que é, ao mesmo tempo, violento e ilegal. Com um crescente prestígio junto aos
Poderes da República, PMs de várias partes do país estão mais encorajados a
violar a Constituição para reivindicar direitos, nem que para isso tenham que
deixar a população à mercê da violência. A categoria tem também a confiança de
que, a exemplo de greves anteriores, pode voltar a receber a anistia do Estado.
O governador cearense, Camilo
Santana (PT), rejeitou a proposta de perdão aos amotinados apresentada por
lideranças do movimento e determinou uma série de punições. Mesmo assim, a
pressão pela anistia permanece presente nas negociações. Em 2017, uma lei
sancionada pelo então presidente Michel Temer anistiou integrantes da segurança
pública de diversos estados que realizaram paralisações. Na ocasião, o país
havia se deparado com uma greve de policiais do Espírito Santo. Além de
depredação do patrimônio público e da explosão do número de homicídios, houve
denúncias do envolvimento de policiais em casos de assassinato.
Ao longo de 20 dias de
aquartelamento, que teve início em 4 de fevereiro daquele ano, 219 pessoas
morreram de forma violenta no estado. De acordo com o texto da lei, grevistas
de 22 unidades da Federação receberam anistia concedida pelo governo federal.
Projeto
Na semana passada, o Senado
aprovou regime de urgência para projeto que concede anistia aos policiais
militares do Espírito Santo, Ceará e Minas Gerais que participaram de motins
nos anos de 2011 e 2018. No caso de Minas Gerais, agentes penitenciários e
policiais civis também são beneficiados.
O requerimento de urgência foi
apresentado pelo senador Marcos do Val (PPS-ES). A expectativa é de que o texto
seja votado depois do carnaval. Há dois anos, o Supremo Tribunal Federal (STF)
entendeu que é ilegal qualquer greve de policiais, inclusive da Polícia Civil.
No mesmo julgamento, a Corte definiu que o Estado é obrigado a participar de
negociações com as associações que representam essas categorias.
O jurista Thiago Sorrentino,
professor de Direito do Estado do Ibmec/DF, destaca que a concessão de anistia
não é automática, e depende mais de uma vontade política do que jurídica.
“Somente a União pode conceder esse tipo de anistia. Mas a iniciativa precisa
partir do Congresso Nacional e, posteriormente, deve ser sancionada pelo
presidente da República. Os governos estaduais podem atuar em alguns processos
administrativos. Mas neste caso, não podem ter consequências penais
envolvidas”, explica.
Sorrentino destaca ainda que a
punição para o ato de greve ou motim está prevista no Código Penal Militar e
pode ser aplicada independentemente de o agente de segurança participar de
crimes mais graves, como dano ao patrimônio público. “Só o fato de parar já representa
crime. Dentro da estrutura militar, há o princípio da hierarquia. E a violação
desse item é extremamente grave. Para civis, às vezes é difícil entender, pois
temos o direito de argumentar, de fazer um contraponto. No entanto, no meio
militar, tem o sistema de hierarquia para garantir a ordem”, completa.
Incensada por prefeitos,
governadores, parlamentares e, principalmente, pelo presidente da República, a
instituição Polícia Militar passou a exercer forte influência política no país,
ao mesmo tempo em que virou motivo de preocupação para a própria segurança
pública. O prestígio dos agentes das forças de segurança foi fortalecido
durante a campanha eleitoral de 2018, quando a bandeira do combate à
criminalidade dominou os debates. O presidente Jair Bolsonaro foi um dos
principais beneficiados com essa plataforma, ao lado de governadores como o de
São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC).
Sobre esses dois estados,
políticos e especialistas apontam um aumento da ocorrência de casos de abuso de
autoridade e de insubordinação. Segundo entidades representativas dos
policiais, de nada vale o afago das autoridades se as demandas da categoria não
são atendidas.
Líderes dessas associações
admitem que o motim de policiais no Ceará pode ser replicado em outras partes
do país caso os governadores insistam em não negociar os pleitos da categoria.
Além do Ceará, pelo menos cinco unidades da Federação passam por processos de
negociação de aumento salarial de policiais — incluindo os civis — e bombeiros
militares: Paraíba, Espírito Santo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Piauí.
Na Paraíba, houve uma paralisação de 12 horas na semana passada, e os
manifestantes saíram às ruas para esvaziar pneus de viaturas da PM. Além disso,
fizeram piquetes para impedir o trabalho de quem não aderiu ao protesto.
Apesar de reconhecerem que a
Constituição proíbe os agentes de segurança de se sindicalizarem e de fazerem
greve, lideranças de entidades representativas dizem que as paralisações são necessárias
como resposta ao não atendimento às necessidades básicas desses profissionais.
Marco Prisco Caldas Carvalho, presidente da Associação Nacional de Praças
(Anaspra), afirmou, em entrevista ao Correio, que “o movimento no Ceará é
ilegal, mas não é imoral”.
“Os salários são baixos; não há
uma carga horária, o regime é escravo. Esses policiais militares estão fazendo
um bem à sociedade cearense ao alertarem que não dispõem das condições
necessárias para proteger a vida das pessoas”, diz Prisco. Segundo ele, muitos
governadores se aproveitam do fato de os policiais serem proibidos de fazer
greve para adiar as negociações com a categoria.
Limite
“O que está acontecendo em vários
estados no país, com policiais mobilizados para assegurar os seus direitos, não
é uma ação em bloco, mas o reflexo de que a situação chegou ao limite do
insuportável. Os policiais militares dedicam sua vida ao próximo diariamente.
Mas qual é o preço da vida do policial?”, questiona o representante da Anaspra.
Ele também reclama do fato de o Código Penal Militar, editado à época do Ato
Institucional nº-5 (AI-5), durante a ditadura militar (1964-1985), continuar em
vigor após a promulgação da Constituição de 1988.
“Todas as outras categorias foram
beneficiadas com a Constituição, e apenas nós continuamos proibidos de pleitear
os nossos direitos”, diz Marco Prisco. Entretanto, ele comemora a sanção, pelo
presidente Jair Bolsonaro, no final de dezembro, da lei que extingue a prisão
disciplinar para policiais militares e bombeiros. A lei havia sido aprovada
pelo Senado.
Já o presidente da Associação
Nacional de Entidades Representativas de Policiais Militares e Bombeiros
Militares (Anermb), sargento Leonel Lucas, afirma que a falta de uma abertura
ao diálogo dos governadores não é de agora. “Para se ter uma ideia, na Paraíba,
onde houve recentemente uma paralisação de 12 horas, a promessa do governo de
negociar vem desde junho de 2019. Em Santa Catarina, os policiais estão há seis
anos sem reajuste. Não podemos descartar, diante desse termômetro, a ocorrência
de novos motins no país”, diz Lucas. “Os
governadores não estão tendo sensibilidade para tratar de um tema altamente sensível
como a segurança pública”, critica.