Entre os conflitos internacionais dos quais o Brasil participou, nenhum é comparável à Guerra do Paraguai em tropas mobilizadas e, principalmente, em número de mortos.
O Brasil se uniu à Argentina e ao Uruguai,
formando a Tríplice Aliança, que derrotou o Paraguai depois de uma
série de batalhas ao longo de pouco mais de cinco anos, entre 1864 e
1870.
Embora tenha saído vencedor, o país de dom Pedro 2º contabilizou um
quantia enorme de óbitos, pelo menos 50 mil, segundo os estudos mais
recentes e detalhados.
"É preciso se dar conta da grandiosidade desse número", diz o
historiador e jornalista Mauro César Silveira, autor de "A Batalha de
Papel" e outros livros sobre a Guerra do Paraguai.
Silveira faz menção ao número de brasileiros mortos ao longo do maior
conflito armado da história da América do Sul. Mas se refere também ao
número de habitantes do país que morreram em decorrência da Covid-19 até
agora.
Segundo dados compilados pelo consórcio formado por Folha de S.Paulo,
O Estado de S. Paulo, Extra, O Globo, G1 e UOL, o Brasil registrou
49.101 mortes, em balanço aferido na manhã deste sábado (20). O
levantamento é feito com a coleta de dados das Secretarias de Saúde dos
estados.
O país chegou à marca pouco mais de três meses depois do primeiro
óbito por um infectado de Covid-19, no dia 16 de março, em São Paulo.
Bastou um trimestre, portanto, para que a pandemia do novo coronavírus matasse tantos brasileiros quanto essa guerra, uma das mais longas e sangrentas do século 19.
Autor de obras como "Dom Pedro 2º" e "Forças Armadas e Política no
Brasil", o historiador José Murilo de Carvalho divide a Guerra do
Paraguai em três etapas em relação aos mortos e feridos.
"A primeira parte, com baixas divididas entre os dois lados, vai de
maio de 1866, com a primeira batalha de Tuiuti, a novembro de 1867, com a
segunda batalha de Tuiuti, incluindo a epidemia de cólera de 1867, que
matou uns 4.000 brasileiros", explica Carvalho.
"A segunda etapa foi a sequência de batalhas, chamada Dezembrada, de
dezembro de 1868 à tomada de Assunção, em janeiro de 1869, que quebrou a
coluna dorsal do Exército paraguaio. As mortes foram muito maiores do
lado guarani. A última parte, com as tropas brasileiras sob o comando do
conde d'Eu, vai até 1° de março de 1870. Foi uma carnificina", afirma o
historiador.
O Paraguai foi devastado. Pelo menos 60% dos 420 mil habitantes do
país à época morreram ao longo do conflitos –não só nos combates mas
também vítimas de epidemias, como a da cólera.
Um século e meio separa os dois episódios, a Guerra do Paraguai e a
pandemia do novo coronavírus. Um abismo demográfico divide o Brasil dos
anos 1860 e o país de hoje – eram cerca de 9 milhões de habitantes; hoje
são mais de 210 milhões. Àquela altura, uma monarquia; atualmente, uma
república.
Seria leviano desconsiderar diferenças tão expressivas, além de
avanços econômicos e sociais. Mas existem fortes pontos de contato entre
esses dois Brasis, dizem historiadores ouvidos pela reportagem.
O descaso do poder central em relação à fatia mais vulnerável da
população, uma inação que tende a acentuar a desigualdade social,
aproxima os dois momentos.
"Houve naquela época, como há hoje, insensibilidade dos governantes", afirma Silveira. "A dimensão da tragédia é semelhante."
Para Adriana Barreto de Souza, autora de "Duque de Caxias - O Homem
por Trás do Monumento" e especialista em Brasil Império, "o que aproxima
os dois contextos é o desvalor das vidas perdidas. Só foram para a
guerra aqueles que não contavam com redes de proteção, ou seja, amigos e
padrinhos. Os filhos da elite, na sua grande maioria, não foram para as
batalhas. Por isso, inclusive, muitos escravos foram libertados. Eles
substituíram os rapazes bem nascidos. Ou seja, ironicamente, ex-escravos
é que foram os defensores do Brasil".
Segundo ela, "sabemos hoje que as maiores vítimas da pandemia são (e
serão ainda mais) os brasileiros pobres, em sua maioria negros. Aqui no
Rio, a curva de avanço do vírus é muito clara. Já estacionou na zona sul
e cresce descontroladamente na Baixada Fluminense, região periférica e
historicamente desassistida pelos governos".
Outro ponto que aproxima esses momentos históricos é o risco
acarretado pelo envolvimento dos militares na vida política do país.
Nos idos de 1860, os membros da caserna poderiam ser filiados a
partidos políticos. Na batalha de Curupaiti, em setembro de 1866, eram
três os comandantes das tropas brasileiras, o almirante Joaquim Marques
Lisboa (almirante Tamandaré), o general Manuel Marques de Sousa e o
também general Polidoro Jordão.
Os dois primeiros pertenciam ao Partido Liberal, e o último ao Partido Conservador.
Como explica o historiador Francisco Doratiotto em "A Maldita
Guerra", desentendimentos entre os três contribuíram para que Curupaiti
se tornasse a maior derrota da Tríplice Aliança ao longo do conflito
diante dos homens do ditador paraguaio Solano López. Pelo menos 2.000
brasileiros foram mortos nessa ocasião.
Mais tarde, foi vetada a filiação de militares da ativa a partidos.
Ainda assim, desde então oficiais e praças oscilaram entre participações
ativas na vida política do país e períodos de discrição na caserna.
O governo Bolsonaro tem se notabilizado por embaralhar atribuições políticas e funções militares.
De acordo com informações do site Poder 360, contam-se hoje 2.716 integrantes das Forças Armadas em postos do Executivo.
Diário do Nordeste