Vulnerabilidade social afeta alfabetização durante ensino remoto - Metro


O olhar pelos vãos da porta da casa de Erinaldo Lucas, no Conjunto Alvorada, periferia de Fortaleza, dá direto na escola. É por essas frestas que a criança de 6 anos mata a saudade do local onde podia aprender e se divertir ao mesmo tempo - pelo menos até meados de março. Em 2020, ele havia acabado de iniciar o processo de alfabetização quando as aulas presenciais foram interrompidas por causa da disseminação do novo coronavírus.

Ler e escrever para o pequeno, ao lado dos colegas e da professora, agora têm que ser mediado pela tela do único celular da família, o da mãe Edileuza Sousa, de 38 anos. O uso fica ainda mais complicado para proporcionar o ensino efetivo do filho porque o aparelho não está nas melhores condições.

"Têm umas tarefas que não dão pra fazer toda porque meu celular está quebrado e a memória dele é pequena. Quando a tia envia as tarefas, meu celular não abre todas, aí vou apagando as coisas. Eu tenho que bloquear as pessoas que tenho no WhatsAapp pra não enviarem mensagem, e aí ele poder conseguir fazer as tarefas", explica a mãe.

Se não fosse o bastante, a internet utilizada em casa nem sempre tem conexão, "às vezes cai, às vezes fica fora de área", narra a mulher. Durante a pandemia, o sustento da família vem de uma pensão e do auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal para mãe e dois filhos. Até o início da propagação da doença, Edileuza trabalhava em buffets, mas "com esse problema, parou tudo".
Vinda do interior, ela estudou até a quinta série do ensino fundamental, mas tenta ajudar o filho no suporte das aulas remotas. "A gente tem as atividades de casa, tenho que fazer almoço, arrumar, e tô ensinando as tarefas, e ele tá acompanhando. Mas sempre a professora diz as tarefas, e ela me ajuda, faço as perguntas e passo outras atividades em casa a mais para ele. Mas ele sente muita falta da escola", garante.

Do outro lado

Sempre que possível, na tela do celular, está a professora Antônia Fernandes, que ensina há 17 anos na mesma escola e agora organiza as aulas remotas do pequeno Erinaldo e de outras crianças da instituição municipal de ensino.

O caso da família do menino não é o pior porque, pelo menos, durante a pandemia, ela conseguiu contatá-la. "Alcançar algumas famílias não tá sendo fácil por conta do fator econômico, muitas não têm internet e, quando têm, são aqueles pacotes que as pessoas compram e não demoram muito tempo. A maioria não tem computador, é mais por telefone celular", relata a educadora, que conversa com 15 das 20 crianças da sua turma.

Durante os contatos via aplicativos, diversas vezes, houve quem não pôde assistir à aula toda por problemas técnicos ou porque o responsável precisava ir trabalhar e o celular não tinha sido deixado em casa. O que, para Antônia, é a prova da importância do profissional da educação neste período sensível da formação de um ser humano.

"O sistema é muito excludente por causa das desigualdades sociais. Se já é algo difícil (em outras séries), fica ainda mais no processo de alfabetização, em que a criança está aprendendo a ler e escrever. O profissional que realmente vai conseguir fazer esse trabalho é o professor", atesta.
A situação
Conforme a Secretaria da Educação do Ceará (Seduc), há aproximadamente 200 mil alunos matriculados no 1º e 2º anos do Ensino Fundamental em todo o Estado. Essas séries são consideradas como partes do ciclo de alfabetização de um indivíduo e, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, as crianças devem ser capazes de ler e escrever com até 7 anos de idade.

Durante a pandemia da Covid-19, a Seduc vem "colaborando com os municípios em desenvolvimento de estratégias de aulas remotas e atividades domiciliares", informa em nota. Segundo o órgão, estão sendo utilizadas ferramentas como "caderno de orientação de conteúdos, atividades dirigidas, contação de histórias e vídeos didáticos".

A Secretaria Municipal da Educação (SME) de Fortaleza informou que vem desenvolvendo ações estratégicas desde o dia 20 de março em articulação com o Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação (Sindiute) e atendendo às resoluções do Conselho Municipal de Educação (CME) e do Conselho Nacional da Educação (CNE).

De acordo com a Secretaria municipal, a estratégia principal adotada neste período da pandemia do novo coronavírus foi "a orientação de estudos com atividades domiciliares", planejadas por professores e "entregues aos estudantes e seus familiares pela unidade escolar, que utiliza todos os meios de tecnologia de comunicação disponíveis para interagir com os estudantes", afirmou em nota.
Conforme a SME, quando há impossibilidade do uso de meios eletrônicos, a gestão escolar realiza "entrega e recebimento dos materiais didáticos, atividades, trabalhos de pesquisa, roteiros diários e de estudos, entre outros, de forma segura, atentando para as recomendações de segurança da Organização Mundial de Saúde (OMS)".

A Seduc informou que dados do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Estado do Ceará (Spaece) apontam que 89,6% das crianças cearenses "encontram-se alfabetizadas ao término dessa série", após ações tomadas pelo Governo do Estado com o Programa Aprendizagem na Idade Certa (Mais Paic).

Análise

Os números, entretanto, podem não ser positivos ao fim da pandemia. Na visão da pedagoga Maria José Barbosa, da Faculdade de Educação (Faced), da Universidade Federal do Ceará (UFC), os estudantes em idade de alfabetização "vão ter prejuízos porque, nessa etapa, a criança está em processo de formação das suas funções interiores, desenvolvendo atenção no sentido de ter o foco, o processo de armazenagem na memória e criando a parte do cérebro que vai fazer o processo de leitura e escrita", explica.

De acordo com a pesquisadora, antes, nem sequer era cogitada a possibilidade de ensino remoto para alunos das séries iniciais da educação "porque exige interação, socialização, o sujeito aprende na interação com o outro, nas atividades que ele dialoga". O momento atual, para Maria José Barbosa, é de fortalecimento dos vínculos com a escola a fim de não perder a relação já construída.

Adriana Limaverde, pedagoga do Departamento de Teoria e Prática do Ensino da UFC, acredita que alfabetizar requer a aplicação da fundamentação teórica do professor. "Aprender a ler e a escrever não é algo garantido pela imersão na cultura letrada. Isso deve estar mexendo com as famílias, pois o panorama geral evidencia a desigualdade social e exige dos pais um conhecimento que eles não têm",avalia a estudiosa.
 
Diário do Nordeste

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