Testado no Brasil, novo remédio promete ser mais simples, barato e (talvez) 'bala de prata' contra a Covid

Injeção de Interferon Lambda dá ao corpo as próprias armas para combater o vírus — Foto: Reprodução/The New England Journal of Medicine
Injeção de Interferon Lambda dá ao corpo as próprias armas para combater o vírus — Foto: Reprodução/The New England Journal of Medicine

 

Cientistas podem ter descoberto um novo remédio que promete ser a 'bala de prata' contra formas graves da Covid-19. Chamado de Interferon lambda peguilado, o medicamento reduziu pela metade as chances de um paciente com a doença ser hospitalizado, se mostrou eficiente para anular todas as variantes do vírus e ainda pode ser mais prático e barato que outros remédios já usados.

Os resultados apareceram após ensaios clínicos de fase 3 feitos no Brasil e no Canadá entre 2021 e 2022 e publicados neste mês na revista científica The New England Journal of Medicine, uma das mais importantes da área.

    A pesquisa foi feita com 2 mil voluntários que testaram positivo para Covid e foram atendidos na rede pública de saúde com sintomas leves a moderados - desses, 84% estavam vacinados;
    No Brasil, mais de 30 cidades participaram do estudo (a maioria em Minas Gerais);
    931 pacientes receberam uma dose de Interferon lambda e outros 1.018 receberam placebo;
    A redução nas hospitalizações foi de 51% entre pacientes que receberam Interferon e estavam vacinados.

O estudo foi coordenado pelo brasileiro Gilmar Reis, professor de medicina da PUC Minas e associado da Universidade McMaster (Canadá), que vem apostando em pesquisas de medicamentos que atuam no sistema imunológico do paciente para frear a Covid, o que é uma ação diferente de outros remédios já existentes no mercado, como o Paxlovid da Pfizer (entenda mais abaixo).

"A Covid-19 trouxe uma quebra de paradigmas no tratamento de infecções virais do trato respiratório. O vírus mostrou que hoje nós podemos combater de forma eficiente as complicações de uma infecção respiratória utilizando medicamentos que atuam no sistema imunológico e na inflamação", disse Reis em entrevista ao g1.

O professor é um dos líderes do ensaio clínico Together, que já avaliou 11 remédios diferentes em pacientes contaminados não-hospitalizados. Foi a equipe dele que ajudou a desmentir, no início da pandemia, a informação de que a hidroxicloroquina era eficaz contra a doença.

Nesta reportagem, você vai saber mais sobre:

    O que é o Interferon lambda?
    Como o remédio combate a Covid?
    A comparação com outros medicamentos
    Os obstáculos para aprovação e comercialização


1. O que é o Interferon lambda?

É um medicamento experimental, sintético, desenvolvido pela farmacêutica norte-americana Eiger para estudos clínicos na África contra os vírus causadores das hepatites B, C e D.

    O Interferon lambda é composto por uma única injeção, aplicada na região do umbigo, e busca 'turbinar' a resposta imune do corpo para infecções virais por vias áreas.

Reis conta que pediu à farmacêutica para testar o remédio em pacientes com Covid e que a autorização veio "de uma maneira totalmente desinteressada” por parte da empresa detentora da patente. Mas os resultados dos testes em voluntários surpreenderam:

    O Interferon lambda se mostrou mais eficiente em pacientes que receberam o medicamento três dias após o início dos sintomas: redução de 65% nas chances de internação e de 81% no risco de morte;
    Entre pacientes não vacinados, a redução de risco de morte foi de 89%;
    Pacientes com alta carga viral no início dos sintomas e que tomaram o remédio apresentaram cargas virais mais baixas após o sétimo dia, na comparação com quem tomou placebo.

Na época do estudo clínico, várias variantes circularam no Brasil, e o remédio se mostrou eficiente contra todas - inclusive a ômicron e suas subvariantes, atualmente predominantes no mundo.

2. Como o remédio atua no organismo?

Os interferons são um grupo de proteínas produzidas pelo organismo. Quando o corpo é invadido por um vírus, elas emitem uma espécie de "alerta" para células vizinhas se fortalecerem.

    Os interferons atuam diretamente na resposta imunológica, aumentando a capacidade de destruição de vírus e bactérias pelo próprio corpo;
    A 'família' de interferons é composta por vários tipos e subtipos, batizados por letras do alfabeto grego;
    O alfa, por exemplo, é comercializado no Brasil para tratamento de tipos de câncer e hepatites crônicas;
    No caso do lambda, a atuação acontece nos tecidos epiteliais, localizados principalmente na parte respiratória, a porta de entrada do Sars-Cov-2 para o organismo.

O coronavírus desliga determinados genes e faz com que o corpo produza pouco Interferon lambda. Por algum motivo, esse é um dos mecanismos pelo qual o vírus impede a defesa do nosso organismo

A injeção de Interferon Lambda dá ao corpo as próprias armas para combater o vírus. Os pacientes que tomaram essa "dose extra" de interferons tiveram essa deficiência provocada pelo coronavírus restaurada. Com isso, o organismo passou a combater o Sars-Cov-2 de forma mais adequada.

3. Interferon versus outros remédios

Os números que mostraram a eficácia do Interferon lambda são bem parecidos com os resultados de outros medicamentos já aprovados e usados no combate à Covid, inclusive no Brasil.

    Atualmente, o principal deles é o Paxlovid, da Pfizer, que aparece em primeiro lugar na lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) com "forte recomendação" para pacientes adultos com Covid não grave e com maior risco de hospitalização;
    Nos ensaios clínicos de fase 3, o Paxlovid reduziu as chances de internação em 89%. Mas, após a ômicron, novos testes indicaram uma queda na eficácia do Paxlovid para 44%;
    Outro antiviral recomendado pela OMS é o molnupiravir, que reduziu o risco de hospitalização em cerca de 30%.

O Paxlovid e o molnupiravir são medicamentos da classe dos antivirais, que atuam diretamente no combate ao vírus causador da doença, diferentemente do Interferon lambda, que faz parte de um grupo de remédios que incentiva que o próprio corpo desenvolva uma resposta imune ao vírus - a vantagem disso, segundo os pesquisadores, é uma maior eficiência na neutralização de variantes.

Além disso, tanto o Paxlovid quanto o molnupiravir são administrados por via oral por um período determinado. Por ser aplicado em dose única, o Interferon lambda promete um tratamento mais ágil e regrado do que o uso de comprimidos diários.

A expectativa também é de que ele, quando for comercializado, seja mais barato se comparado com o Paxlovid, medicamento encontrado nas farmácias com um preço salgado de R$ 4 mil.

    "É um fármaco administrado em dose única tão eficaz quanto 30 comprimidos de Paxlovid por cinco dias em pacientes não vacinados e vacinados, independentemente da variante viral", explicou o professor Gilmar Reis.

4. Os obstáculos para aprovação

Apesar de promissor, o Interferon lambda ainda enfrenta resistência da Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos que equivale à Anvisa no Brasil. O órgão ainda não autorizou o uso emergencial do medicamento, apesar das tentativas da farmacêutica criadora do remédio e da pressão da comunidade acadêmica.

A aprovação esbarra na burocracia: de acordo com o professor Gilmar Reis, o ensaio clínico não incluiu uma cidade dos Estados Unidos, o que é uma condição imposta pelo órgão. Outro motivo é que o estudo foi iniciado e executado por pesquisadores acadêmicos, e não pela farmacêutica.

"Na época [do início do estudo], não havia um interesse comercial envolvido e muito menos da indústria detentora da patente", disse o professor. "Só porque a droga foi estudada sem interesse comercial, quer dizer que ele não tem valor científico? Como assim?", questionou Gilmar Reis.

As esperanças agora estão concentradas na possível aprovação pela Health Canada, agência reguladora canadense, onde foi feito parte do estudo. Com isso, a FDA poderia dar o aval ao medicamento por similaridade. Mas não há prazo para que isso ocorra.

E, no Brasil, o cenário é ainda mais incerto. O Interferon lambda precisa de um "braço" brasileiro para representá-lo, como um laboratório ou uma farmacêutica, que possa solicitar o uso do remédio à Anvisa e ser responsável pela comercialização no país.

"Somos cientistas e não temos propriedade sobre os medicamentos. Estudamos os mesmos para prover respostas para a população. Não cabe a nós a comercialização de um fármaco e sim estudar se ele possui eficácia ou não", afirmou Reis.

 

 

(g1)
 

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