No dia 3 de agosto, quando a
professora Ágata Vieira Mostardeiro, 25, pegou o filho Bento no colo, pela
primeira vez, ela enfrentou a tremedeira nos braços pelo medo de deixá-lo cair,
e o segurou forte. "Não queria mais largar. Tão pequeno e tão lindo.
Fiquei boba, sabe?".
Ter um filho com a designer de
moda, Chaiane Cunha, 26, que tivesse o DNA das duas, era um sonho. Ágata, que
se identifica como mulher trans há um ano e um mês, esperou a gravidez da
namorada ser confirmada para começar o tratamento hormonal de transição de
gênero.
Assim que viu o resultado
positivo, correu para retificar seus documentos a tempo de ter seu nome na
certidão do filho. No dia seguinte ao nascimento, ela seguiu para fazer o
registro de Bento.
A animação com o que era para ser
um dos momentos mais felizes da vida, porém, murchou na mesa da atendente. O
cartório não aceitou seu nome como genitora biológica da criança.
"Me orientaram fazer a
certidão só em nome da outra mãe e eu ser registrada como mãe socioafetiva. É o
que costumam fazer. Mas, eu sou mãe biológica. Bento é meu único filho e acho
que será o único filho biológico possível de nós duas", afirma.
"É angustiante, estar num
momento feliz e não poder registrá-lo, além de me mencionarem como pai, volta e
meia, de uma forma não legítima".
O parto, realizado em Canoas,
região metropolitana de Porto Alegre (RS), não foi fácil. Primeiro, o bebê teve
de enfrentar cinco dias de UTI para regular a glicose, um reflexo do diabetes
gestacional da mãe, que não foi diagnosticado no pré-natal.
Poucos dias depois de ter alta, o
bebê voltou a ser internado no hospital para tratar uma infecção urinária.
Diagnosticado com infecção sanguínea, ele segue em tratamento médico.
Na terça-feira (21), após semanas
à espera de uma resposta da Justiça, Ágata cedeu. Na Declaração de Nascido
Vivo, assinada pelo médico que fez o parto, seu nome estava como
"companheira" da mãe da criança. Ela aceitou registrar o filho como
mãe socioafetiva, para conseguir incluí-lo em seu plano de saúde e trocar de
hospital, enquanto Chaiane assinou um documento dizendo que desistia de
procurar "pelo pai biológico" da criança.
Um dia antes, respondendo ao
parecer do Ministério Público sobre o caso, o Fórum de Canoas condicionou o
registro da criança à apresentação de atestado médico afirmando que Ágata não
havia alterado seu sexo biológico na época da concepção -ou seja, que teria
condições físicas de ser "pai"- e à uma declaração de Chaiane certificando
o vínculo biológico do filho com a namorada.
"Vendo do ponto de vista de
filha sem o nome do pai no registro, sabendo que essa é uma realidade
recorrente, fico indignada. O Bento é de nós duas, é geneticamente das duas.
Não faz sentido que só o meu nome conste", diz Chaiane.
No final de junho, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) publicou a regulamentação para retificações de nome e
sexo em cartórios de todo o país. Sobre filhos, o documento se refere apenas à
mudança de documentos já existentes: em caso de retificação do nome de um dos
pais, a alteração deve ter concordância do próprio filho e de outro pai. O caso
de Ágata é diferente.
"Se o nome já está
retificado, a partir do momento da retificação, todos os atos jurídicos que
essa pessoa praticar ela vai praticar com esse [novo] nome. Inclusive, o ato de
registrar o filho", explica o defensor público Mário Rheingantz.
Em nota, a Associação dos
Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) alega que o cartório "não se
recusou a realizar o registro de nascimento". "A precaução do
cartório foi no intuito de evitar prejuízos à família em razão de eventual
procedimento incorreto", diz o texto.
Para a advogada Gabriela Souza,
que representa Ágata, o caso mostra o despreparo do Judiciário para lidar com
novas famílias e o preconceito da sociedade contra pessoas trans.
"O ato de registro civil é
um ato unilateral. Se vai um homem cisgênero [que se identifica com o sexo
biológico] e hétero registrar a criança, ninguém pede DNA, ninguém pede que a
mãe que está no hospital mande declaração por escrito dizendo que transou com
esse homem. Acredito que esse caso seja o primeiro do Brasil", afirma.
O próximo passo, diz ela, é
entrar com uma ação para constar na certidão de Bento que ele tem duas mães
biológicas e reconhecer Ágata como tal. A advogada também planeja entrar com
uma representação na OAB, por quebra de direitos, e outra contra o próprio
Judiciário.
Com informações da Folhapress.