14 pessoas trans foram mortas no Ceará em 2020; 4 só em agosto


O T de transgênero guarda não só a força de ser das pessoas que assim se reconhecem, ele suprime a tristeza do abandono provocado pela sociedade, a tensão de não conseguir uma colocação no mercado de trabalho e o terror de ser assassinado em qualquer rua em meio à violência e ao preconceito.

Apenas no mês de agosto, foram contabilizados quatro homicídios de mulheres transexuais ou travestis, quase um terço de todos os registros levantados pelo Sistema Verdes Mares (SVM). Até a publicação desta reportagem, pelo menos 14 pessoas trans morreram vítimas de crimes violentos letais. Todos os casos confirmados com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), mas as motivações para tais crimes ainda estão sob apuração.

Os registros deste ano já são superiores ao que foi observado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) em todo o ano passado no Ceará. De janeiro a dezembro de 2019, a entidade contabilizou 11 homicídios cujas vítimas eram da população T. O número não só preocupa, mas é um alarme que precisa soar forte na gestão da Segurança Pública do Estado.

Casos

O caso mais recente aconteceu na cidade de Crateús. Lá, Daniele Rodrigues, de 21 anos, foi encontrada morta em um matagal que fica próximo à sua casa. No dia 10, Letícia Costa, de 29 anos, foi morta nos cruzamentos das ruas Jaime Benévolo e Clarindo de Queiroz, no Centro da Capital. Ela passou quatro meses trabalhando fora do Ceará e voltou às ruas da cidade como profissional do sexo.

Dois dias antes, uma adolescente, identificada pelo Centro de Referência LGBT Janaína Dutra como Ludmila Silva, foi vítima na Rua Dallas, no bairro Granja Lisboa. Ela teria entrado em um matagal com dois homens; minutos depois, de lá se ouviu disparos de armas de fogo. Os suspeitos fugiram. Ela ficou lá. Estendida, ainda com vida até a Polícia chegar ao local, mas não resistiu. A população nem sequer acionou uma ambulância para socorrê-la.

No dia 3 de agosto, outra travesti foi morta, desta vez no bairro Bonsucesso. A identidade dela ainda não foi revelada pela SSPDS, mas o crime aconteceu a 700 metros de uma unidade do Batalhão de Polícia de Meio Ambiente (BPMA). Ela foi encontrada seminua, em uma rua sem qualquer saneamento básico, envolta por uma poça de lama e um muro de um terreno baldio.

Problemas

Se as palavras chocam, é de se imaginar o terror e a revolta que esses casos provocam em integrantes da comunidade trans que, além de conviverem com a tensão do cotidiano, veem amigos e amigas sendo levados pela violência, muitas vezes, motivada pelo preconceito. "São números que assustam, principalmente, por ter sido em pouco tempo. Em uma semana, três casos... Foi um bombardeio de informação. A gente se sente com medo pela vida de todas nós", relata a ativista da Associação de Travestis do Ceará (Atrac) Yara Canta.

"A gente enxerga tudo isso com muita preocupação, apesar de não ser nenhuma novidade essa de estar nesse local de desumanização que a gente enfrenta. São várias questões que culminam até chegar nesses assassinatos", avalia. Na visão de Yara, o poder público não dá devolutivas à população trans porque "além de existir essa transfobia estrutural, não há políticas públicas e nem vontade e preocupação em mudar, nem sequer investigar os casos direito".

A diretora do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis da Polícia Civil do Ceará, delegada Rena Gomes, afirma que os casos de vítimas LGBTQI+ estão sendo investigados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). "Inclusive já foram realizadas várias diligências e estão sendo feitas todas as investigações realmente com essa lente diferenciada com relação a esse público", completa.

Conforme a delegada, há ações dentro da SSPDS e da Polícia Civil voltadas para otimização do atendimento do público LGBTQI+, além de uma comissão formada com vários profissionais da área. "Essa comissão é responsável por otimização, melhorias no sistema de informações policiais para que nós possamos ter melhores dados e que a gente possa, com eles, impactar na elaboração de políticas públicas", explica.

Subnotificação

De acordo com a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), Mariana Lobo, os números são subnotificados e há problemas no atendimento a essa população. "Ainda existe uma dificuldade muito grande da quantificação dos casos de transfobia e de violência, seja por causa do reconhecimento da identidade de gênero em si, seja pelo não preparo da rede de segurança pública, principalmente nas delegacias de polícia para a notificação correta desses delitos", acredita a defensora.

Segundo Mariana Lobo, mesmo após um ano desde que o Supremo Tribunal Federal equiparou o crime de LGBTQIfobia ao de racismo, o Sistema de Informação Policial (SIP3W), utilizado pela Polícia Civil, ainda não tem tipificado o crime de transfobia. Na visão da defensora, "ainda não existe uma política muito consolidada nos órgãos de segurança na perspectiva de fazer um recorte desses casos, que tem como questão de fundo o ódio e a discriminação", pois, para ela, deveria haver "recorte e prioridade na apuração".

Mariana ainda ressalta, assim como Yara Canta, que o homicídio é o ápice de um sistema que já promoveu uma série de perdas de direitos e outras violências. Foi assim com Babalu, morta em 22 de junho deste ano. Aos 44 anos, ela havia acabado de sair de um hospital, no Centro de Pacajus, quando foi atingida por disparos de arma de fogo. Babalu havia ido à unidade para retirar gases e pontos provocados por uma tentativa de homicídio ocorrida um mês antes, no mesmo bairro do município.

No campo

Para a titular da Coordenadoria de Políticas Públicas para Diversidade Sexual de Fortaleza, Dediane Souza, "existe um processo de intolerância contra esses corpos trans, que são corpos que não têm como se camuflar e são muito visíveis dentro das relações. Então há um atravessamento da naturalização da violência".

Ela pondera que embora as mulheres transexuais e travestis já se encontrem em um contexto de vulnerabilidade, os lugares onde mais são promovidas violências contra elas são nas próprias comunidades onde vivem, moram e se socializam. Por isso, o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra oferta serviços quando se trata de violação de direitos e violência dessa população.

Conforme Dediane, o Centro atua junto aos órgãos de segurança catalogando e acompanhando os casos. "É toda uma rede que a gente precisa mobilizar para que a gente mostre para a sociedade o nosso papel. O intuito é de que esses casos não possam ser esquecidos, porque eles precisam ir a julgamento, essas pessoas precisam ser punidas de acordo com a lei para que não haja mais esse tipo de crime", evidencia.

Pelo menos 14 pessoas transexuais ou travestis foram assassinadas neste ano de 2020 no Ceará, cerca de 30% dos casos ocorreram em um intervalo de um mês, entre os dias 11 de julho e 10 de agosto. A maioria dos casos aconteceu em Fortaleza, mas há registros em outras cidades do Estado



(Diário do Nordeste)

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