'Agora estou feliz', diz idosa resgatada de situação análoga à escravidão em Ribeirão Preto, SP

'Agora estou feliz', diz idosa resgatada de situação análoga à escravidão em Ribeirão Preto, SP — Foto: Chico Escolano/EPTV
Foto: Chico Escolano/EPTV

 

“Agora estou feliz. Estou na casa do meu irmão. Aqui é uma paz, e lá não era. Aqui não tem ninguém que me amola, que me aborrece. É só nós dois. Ela [patroa] tinha condição de me dar um salário. Foi errado o que ela fez comigo. Para ela não trabalho mais, não”, disse, em entrevista à EPTV, afiliada da TV Globo.


Denúncia

O caso foi divulgado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em Ribeirão Preto na quarta-feira (7), mas a operação de resgate que contou com o órgão, o Ministério do Trabalho e a Polícia Militar ocorreu em outubro deste ano após uma denúncia anônima.

Segundo o processo ao qual o g1 teve acesso, a médica Maria de Fátima Nogueira Paixão e o empresário Hamilton José Bernardo são acusados pelo MPT de privar a idosa de ter vida social, acesso ao dinheiro do salário e de mantê-la em condições precárias.

Na ação civil pública, o MPT pede cerca de R$ 800 mil de indenização à vítima. A Polícia Federal (PF) foi acionada para investigar o casal criminalmente.

A idosa, que é negra e de origem humilde, relatou que trabalhava todos os dias e que fazia de tudo na casa. Ela afirmou que esporadicamente recebia R$ 20 ou R$ 50 para ir a Jardinópolis (SP) visitar a família.

“Eu fazia tudo, lavava, passava, arrumava. Tudo. Eu fazia meu serviço doméstico. Ela falava que pagava. Quando eu vinha para cá, pode perguntar ele [irmão], eu sou aposentada, aí ela me dava R$ 30, R$ 20. Não era justo, mas eu falava não nada porque eu não entendo”, afirmou.

Cartão de BPC confiscado


De acordo com a auditora fiscal do trabalho Jamile Virgínio, que participou da operação de resgate da idosa, a vítima havia sido inscrita pela patroa no Benefício de Prestação Continuada (BPC), concedido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Porém, a mulher não tinha acesso ao cartão de saque. Atualmente, o benefício tem o valor de um salário mínimo, o que equivalente a R$ 1.212.

Jamile explicou que a empregada não poderia ser inscrita, uma vez que trabalhava para o casal e deveria receber salário.

"Ela foi cadastrada para receber esse benefício pela empregadora, e a empregadora fazia administração desse recurso. Comprava gêneros de primeira necessidade, shampoo e sabonete. Dava a ela uma pequena parte desse benefício, e o restante não se sabe o que foi feito até hoje. Do salário, ela nunca recebeu nada", disse.

Promessa de compra da casa própria


Segundo o procurador do trabalho Henrique Correia, a mulher começou a trabalhar como empregada doméstica ainda na infância, mas na casa de outra família. Ela se mudou para o imóvel do empresário e da médica depois que a antiga patroa a “cedeu” para o casal.

Não há documentos que comprovem quando isso aconteceu. Em seu depoimento, a vítima também não soube precisar a data e disse, inclusive, que não sabia quantos anos tinha. Sua referência de tempo era a idade do filho da médica pediatra. Quando ela chegou à casa, o menino tinha quatro anos, hoje tem 31.

"Mulher, negra, de origem humilde, analfabeta, ela é mais um exemplo de interseccionalidade, uma vez que evidencia a sobreposição de opressões e discriminações existentes em nossa sociedade, as quais permitiram que tantos anos se passassem sem que a presente situação de exploração fosse descoberta pela comunidade que rodeava a família”, afirmou o procurador.

A idosa contou que sempre ouviu da médica a promessa de que compraria uma casa para ela morar, mas o imóvel nunca chegou a ser adquirido.

“Falava pra mim que estava juntando dinheiro para uma casa, eu nunca vi essa casa. Nunca. Fui muito [enganada], porque ela falava vou comprar uma casa para você, e eu nunca vi essa casa.”

Ela também contou que tinha dias que chorava o dia todo porque tinha vontade de deixar a casa. “Eu sentia [triste], tinha dia que eu chorava o dia inteiro de tristeza. Tristeza de trabalhar e ficar quieta. Não queria [estar lá].”

Patrões com condições de pagar salário


A médica Maria de Fátima Nogueira Paixão foi funcionária da Prefeitura de Ribeirão Preto e recebe uma aposentadoria de R$ 21 mil. O marido dela, o empresário José Hamilton Bernardo, é dono de loja de roupas.

Nos 27 anos em que trabalhou na casa na Ribeirânia, ela ajudou a criar três filhos do casal. Todos os três se formaram em medicina.


A vítima vivia em situações precárias, segundo o MPT, com roupas e sapatos simples que em depoimento disse terem sido comprados pela empregadora.

A médica, por sua vez, alegou que pagava um salário mínimo por mês, mas não apresentou recibos comprovando pagamentos de salários, férias e décimo terceiro, segundo a Procuradoria do Trabalho.

“Eu quero o dinheiro que eu mereço. Ela tinha condição de me dar um salário”, afirmou a idosa.

À Justiça, o casal disse manter a vítima como "alguém da família". Apesar disso, a empregada dormia em um cômodo separado da casa e sem janelas. Havia uma cama, um armário, um ventilador e um cabideiro para improvisar um guarda-roupa. Com isso, algumas peças ficavam em cima da cama.

Recomeço


Na sexta-feira (2), a Justiça bloqueou R$ 815,3 mil em bens dos acusados. O montante será transferido para a idosa, com objetivo de reparar os abusos praticados pelos empregadores, informou o MTP.

A idosa tenta superar a situação à qual era submetida e espera que seja feita justiça.

“Eu quero acabar com isso, não quero me envolver com mais nada. Não quero desejar o mal. A vida me ensinou a não ser ruim para ninguém, não quero. Não põe esse negócio de cadeia, mas na Justiça ela tem que pagar. Ela tem de me dar o tanto que for.”

(G1)

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